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Cartas de etnólogos franceses recordam valor da alteridade

Livro reúne quase 30 anos da correspondência de Roger Bastide e Pierre Verger

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Foto de Pierre Verger mostra Iniciada para Oxum em estado de transe, Recife, Brasil, 1947.
Iniciada para Oxum em estado de transe, Recife, 1947; foto está em “Diálogo entre Filhos de Xangô”  - Pierre Verger/Divulgação
Escritor, autor de “A Hipótese Humana”

Diálogo Entre Filhos de Xangô: Correspondência 1947-1974

  • Preço R$132 (720 págs.)
  • Autoria Roger Bastide e Pierre Verger
  • Editora Edusp/Fundação Pierre Verger
  • Tradução Regina Machado Campos,

Um dos grandes problemas contemporâneos é a ameaça concreta de extinção dos múltiplos biomas terrestres, seja pelo risco que representa à sobrevivência humana, seja pelo reconhecimento de que o direito à vida se estende aos animais.

É um debate que encampa cientistas, artistas e múltiplos segmentos da sociedade, no mundo todo: a preservação da biodiversidade.

Curiosamente, não se vê a mesma urgência da pauta quando o tema é a preservação de uma etnodiversidade. Ao contrário, a globalização, que unifica culturas, é muitas vezes tido como sintoma da evolução da espécie.

Todavia nada pode ser mais perigoso para nossa saúde existencial, intelectual e estética que a anulação da alteridade. Nesse sentido, nenhuma disciplina humana mais importante que a etnologia.

Digo isso a propósito de "Diálogo entre Filhos de Xangô", reunião da correspondência mantida por Roger Bastide e Pierre Verger por quase 30 anos. É uma edição primorosa da Edusp com apoio da Fundação Pierre Verger, que traz belíssimas fotografias e é minuciosamente anotada por Françoise Morin, etnóloga que trabalhou com Bastide.

Não custa apresentá-los: Roger Bastide, que viveu no Brasil entre 1938 e 1954, foi professor de sociologia na USP e escreveu importantes ensaios sobre literatura, como "A Poesia Afro-Brasileira", além de estudos seminais sobre as religiões de origem africana.

Pierre Verger, etnofotógrafo que percorreu meio mundo e se fixou em Salvador, onde morreu, é autor de clássicos sobre o tráfico negreiro e sobre os orixás iorubanos, além de ter alcançado o título maior de babalaô, sacerdote de Orunmilá, divindade oracular que, por conhecer todo o passado, orienta o futuro.

As cartas tratam fundamentalmente de temas ligados à cultura popular brasileira, à África, ao mundo dos orixás. Para o leitor interessado no complexo simbólico dos candomblés, é texto fundamental, a oportunidade de colher o dado etnográfico ainda cru.

O grande mérito do livro, contudo, me parece outro: embora formados numa tradição profundamente cartesiana, tanto Verger quanto Bastide não se contentaram em observar fenômenos etnológicos, descrevê-los, analisá-los e integrá-los numa teoria geral.

Decidiram transpor a fronteira entre sujeito e objeto; passaram, eles mesmos, a fazer parte da cultura que estudavam, tornando-se iniciados no culto de Xangô.

É muito interessante, por exemplo, saber que Bastide passou a se considerar africano após a iniciação, já que esta representa um renascimento. Ou ler uma carta em que Verger adverte o amigo sobre uma interdição alimentar dos filhos de Xangô: "Estou consternado com a notícia do seu acidente de carro... você tem certeza de não ter cedido à gulodice e não ter comido algum cassoulet de Toulouse, ou qualquer outro prato contendo feijão-branco?"

Não é, decididamente, algo que se espere de racionalistas. Pierre Verger e Roger Bastide superaram tal limitação, mergulharam na experiência ímpar da alteridade, da desconstrução do eu. "Diálogo entre Filhos de Xangô" é, nesse sentido, um documento comovente.

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