Voodoohop, marco inicial da noite selvagem, festeja 10 anos com baile saudosista

Festa abriu a era das baladas em lugares abandonados, esnobando as boates

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Detalhe da decoração da Voodoohop Renata Chebel

São Paulo

Pode fumar na pista de dança. Pode dar um pega no baseado —e usar outros aditivos— sem ter que se esconder no banheiro nem se preocupar com cara feia dos seguranças. Pode desfilar com os seios à mostra. Mas também pode se sentar no chão, sem falar com ninguém, numa das salas da Trackers, prédio meio abandonado no centro paulistano.

O clima de liberdade absoluta que reinou no fim de semana, comemoração dos dez anos da festa Voodoohop, dá uma ideia dos porquês desta balada ter marcado uma geração de jovens que hoje está quase na faixa dos 40 anos. 

"Reconheço a mesma energia e o mesmo espírito de dez anos atrás. A Voodoohop reúne um grupo de pessoas muito livres e abertas", diz Bibiana Graeff, professora e vocalista da banda Anvil Fx, frequentadora da balada desde o início. "Nessa década, percebi mais mudanças em mim do que na própria festa", acrescenta.

O revival serviu também para encantar quem ia pela primeira vez. "Vi uma nova geração descobrindo a novidade, como a gente vivia naquela época. Cada uma das salas do lugar, como se fossem universos diferentes." De fato, havia muitos jovens na faixa dos 20 e poucos anos, que não teriam idade legal para entrar na Voodoohop há uma década.

O criador da balada, o alemão Thomas Haferlach, que não mora mais no Brasil e deixou de realizar a edição paulistana da Voodoohop há anos, veio para as comemorações. Ele mal conseguia pedir uma pizza sem ser interrompido por alguém dando os parabéns pelos dez anos da noite ou querendo um abraço para matar as saudades. Haferlach era só sorrisos.

É curioso observar o tanto de gente "bicuda" que havia na Trackers, ensimesmada, vagando pelos corredores como se fossem zumbis, com o olhar perdido. A impressão é que estavam em outro mundo.

Nessas horas, o espírito comunal e a leveza que se esperam de uma festa se esvaem. 

Mas alguns discordam. "É um espaço de transgressão, não é pesado, é leve. Pensei, 'nossa, quanta gente doidinha!'. Mas mesmo que você não estivesse no mesmo 'mood', não se sentia mal no ambiente, não ficava deslocado", diz Graeff. Ela conta que foi à festa sozinha e se sentiu acolhida, "parte de uma família".

Olhando mais de dez anos para trás, os "walking dead" da Voodoohop remetem ao público que ficava em uma antessala próxima aos banheiros do extinto clube Vegas, na rua Augusta. Quando começava o after hours, as pessoas de certa maneira perdiam a conexão umas com as outras, não importa se por terem cheirado muito ou só por quererem ficar sozinhas. 

Parte dessa turma que vivia no Vegas acabou migrando para o Bar do Netão, na mesma Augusta, quando a boate de Facundo Guerra saudada por renovar a região começava a dar sinais de cansaço. 

Foi naquele boteco de piso frio e pista de dança minúscula que um alemão radicado São Paulo começou a botar som de maneira despretensiosa, dando início ao que viria a ser a Voodoohop.

A história que se seguiu é conhecida. Na década seguinte, o coletivo de artistas e DJs Voodoohop, que produzia a festa de mesmo nome, ocupou com baladas espaços estranhos da cidade, com pouca estrutura, e levou a eles um público ávido para sair do confinamento das boates, cada vez mais caras e com esquemas de segurança restritivos. Surgiu então uma cena de festas com o mesmo espírito de liberdade, a exemplo da ODD, da Mamba Negra e da Sangra Muta.

A Voodoohop fez nascer também projetos musicais e mesmo casas noturnas. O empresário Tiago Santos, conhecido como Tiaguinho, diz que "foi fruto" da comunidade nascida ao redor da festa quando esta ainda rolava no Bar do Netão. "De lá trabalhei em muitas festas e clubes e hoje tenho meu próprio espaço, o Cabaret da Cecília."

Outro dos trunfos da Voodoohop, ontem e hoje, é propiciar um "safe space" para minorias, usando a expressão que ganhou força nos Estados Unidos diante da onda de direita que elegeu Donald Trump há três anos. É um local seguro para minorias e desajustados (no bom sentido) de todo tipo, que ali podem se expressar como quiserem, sem medo de serem ameaçados. 

Entenda minoria, neste contexto, de maneira bem ampla —gays, pessoas de cor, transgêneros (que contam com lista de entrada exclusiva e muitas vezes não pagam ingresso), quem vai de bicicleta, quem tem o rosto tatuado. São poucas as cidades do mundo que fazem festas com público tão diverso, dizem DJs e pessoas do meio, e isto estava claro na celebração dos dez anos. 

No último sábado à tarde, integrantes do coletivo Voodoohop cantaram parabéns e assopraram velinhas. Mas a comemoração se estendeu até à tarde do domingo. Às 14h, a página do evento no Facebook registrou em vídeo os últimos sobreviventes na pista, ainda dançando, meio cambaleantes. A legenda do post era: "Será que acaba?".

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