Fotógrafas mulheres dominam festival francês com novo olhar sobre sexo

Festival de Arles, mais tradicional mostra de fotografia, completou 50 anos

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Homem e mulher comendo mamão

Fotografia da artista chinesa Pixy Liao Reprodução

Cristianne Rodrigues
Arles (França)

Em sua 50ª edição, o festival de fotografia Rencontres d’Arles, um dos mais tradicionais do mundo realizado todo ano na cidade francesa, destaca a força do olhar feminino.

Nele, imagens se apresentam como ferramenta de reflexão sobre as relações pessoais, um espelho refletindo a condição da mulher, da sublimação do cotidiano à exploração da intimidade como reduto da liberdade.

O trabalho de Pixy Liao é o mais inovador da seleção deste ano. Associada a uma estética pop, a artista chinesa radicada em Nova York vem se questionando sobre as relações de poder, a dinâmica dos gêneros, as pressões socioculturais e o impacto das convenções nas relações amorosas da China do século 21. 

Na série fotográfica “Uma Relação Experimental”, Liao apresenta um audacioso ensaio de autorrepresentação, criando uma mise en scène bem-humorada sobre o conflito de submissão do masculino à dominação feminina. 

“Enquanto mulher educada na China, eu acreditava que só podia me relacionar com um homem mais velho e mais maduro do que eu. Até que encontrei Moro, que é mais jovem, e me tornei a pessoa que tinha a autoridade e o poder na dinâmica do casal. Meu namorado é japonês e esse projeto descreve uma relação de amor e ódio”, conta a artista.

O festival traz também uma mostra histórica sobre a condição feminina nos Estados Unidos dos anos 1970, quando o feminismo toma grande impulso naquele país. 

É nesse momento, depois da legalização do aborto, que Eve Arnold, Abigail Heyman e Susan Meiselas publicam livros de gênero até então inédito associando imagens e testemunhos para questionar os estereótipos presentes nos papéis desempenhados pelas mulheres na vida amorosa, familiar e profissional. 

Enquanto Arnold aborda o caráter obsessivo e aprisionante dos cuidados com a aparência, Heyman  registra as tarefas domésticas invisíveis que enchem sua vida tais como as compras no supermercado ou a limpeza da casa. 

Banais e entediantes, essas atividades, que até então jamais tinham sido objeto de um ensaio fotográfico, se tornam espelho para as mulheres americanas ao mostrar a crueza da condição feminina. 

É nesse momento também que Susan Meiselas flagra em imagens os corpos das profissionais do strip-tease no nordeste dos Estados Unidos. Captadas nos momentos de pausa entre um espetáculo e outro, as imagens mostram mulheres fora do contexto de contemplação masculina, em que, libertas da necessidade de seduzir, revelam seus sonhos e suas ambições.

Pouco mais tarde, numa Espanha recém-liberta do jugo franquista, Ouka Leele se torna protagonista de uma contracultura por meio da fotografia.

Ela mostra até que ponto esse movimento representou um grito de liberdade para a juventude de Madri, onde todos os excessos eram possíveis —e passíveis de serem fotografados. Sexo, drogas e rock n’ roll, personagens underground e artistas emergentes num ambiente festivo do qual Pedro Almodóvar é hoje seu mais célebre representante surgem nessas imagens.

Leele apresenta uma série de obras que partem da imaginação e se concretizam na fotografia, com o auxílio do teatro e da pintura. Segundo a artista, suas obras não têm por função fazer uma crítica social, elas são na verdade uma sublimação do cotidiano, uma “mística doméstica”.

Construída nesse período marcado por grandes agitações políticas mas também por uma forte resistência, a obra da tcheca Libuše Jarcovjáková apresenta a vida noturna de Praga sob o regime comunista nos anos 1970 e 1980, num contexto sombrio de privação da liberdade.

Foi na companhia dos personagens homossexuais e transsexuais por ela retratados que Jarcovjáková conquistou a liberdade que marcaria sua linguagem fotográfica, por muito tempo rejeitada pela academia local.

Outro ponto culminante do festival é a obra da cineasta e fotógrafa grega Evangelia Kranioti, com seus impactantes afrescos audiovisuais das sociedades contemporâneas. Em entrevista recente, ela definiu seus projetos como declarações de amor às mulheres e aos homens marcados pela solidão.

“São seres sem referências, habitados por questionamentos e dúvidas, que vivem entre um profundo desejo de serem esquecidos e a imperiosa vontade de se reinventar, formando uma errância íntima e iniciática.” 

Numa das séries, a artista acompanha a tripulação de um navio em travessia pelo Mediterrâneo, onde a cada porto os marinheiros alimentam amores negociados e passageiros. Ela confronta ainda o drama de seres vivos que migram para as necrópoles do Cairo como uma derradeira solução de moradia. 

Noutro trabalho, Kranioti explora as múltiplas facetas da cidade do Rio de Janeiro no momento em que convergem o carnaval e as agitações políticas do ano passado, “partindo da ideia de se travestir no seu sentido mais amplo para abordar a transformação do corpo íntimo e do corpo social”.

É na construção dessa obra de estética misteriosa que Evangelia Kranioti trava contato com Luana Muniz, a rainha da Lapa, ícone queer desaparecido há dois anos,  uma figura que se tornou uma alegoria pungente do Brasil contemporâneo.

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