Sérgio Augusto reúne críticas de cinema em livro e fala da vulgarização do ofício

Primeira antologia de ensaios do jornalista dedicados ao universo cinematográfico mescla crítica e memória

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Rio de Janeiro

O garoto de 14 anos não esperava descobrir a sua futura profissão naquele jornal deixado na porta de casa, numa manhã de 1956. A leitura da coluna do crítico de cinema Moniz Vianna, no Correio da Manhã, o desobrigou de testes vocacionais. “É isso que eu quero fazer da vida”, ele pensou alto.

Perto de completar 60 anos de jornalismo, Sérgio Augusto, 77, ganha a primeira antologia de ensaios dedicados ao universo cinematográfico. Escritos em sua maioria entre 2000 e 2010, os 89 textos de “Vai Começar a Sessão”, lançado pela editora Objetiva, refletem a maturidade do crítico cultural, que não traiu aquela intuição na adolescência.

O jornalista e crítico de cinema Sérgio Augusto - Chico Cerchiaro/Divulgação

O ex-membro do Pasquim trabalhou em redações do Rio de Janeiro, onde mora, e colaborou por 15 anos com a Folha, tornando-se colunista d’O Estado de S. Paulo nos anos 1990. Em 1960, Sérgio Augusto 
se integrou à geração do cinema novo no jornal estudantil O Metropolitano, sem medo de sair desta trincheira para frequentar críticos não alinhados ao movimento, como Moniz Vianna e Ely Azeredo.

“Não estranhava, não me constrangia. Relacionava-me com Moniz, Ely, os demais 365 críticos de cinema do Correio da Manhã e os colegas de outras redações da mesma forma descontraída como convivia com os cineastas”, diz Sérgio Augusto à reportagem. 

“Cacá Diegues foi meu primeiro ‘professor de jornalismo’, pois chefiava a redação de O Metropolitano. Curiosamente, foi o único dessa turma de amigos que brigou comigo, por causa de minha crítica ao filme ‘Joanna Francesa’ na revista Veja. Mas não demoramos a fazer as pazes.”

Apesar das pressões, Sérgio Augusto não usou a crítica como uma etapa para realizar longas. O cineasta Walter Lima Jr., seu amigo, queria tê-lo como assistente de “Menino de Engenho”, de 1965. “Agradeci, não era a minha dirigir cinema, e lhe sugeri a contratação de um menino que me parecia especialmente talentoso, chamado Julio Bressane.”

Sérgio Augusto e Sharon Tate numa viagem de navio entre Acapulco e Los Angeles, em 1967 - Acervo pessoal

Outro exemplo de sua autonomia veio em 1989, ao publicar “Este Mundo É um Pandeiro – A Chanchada de Getúlio a JK”, pioneiro resgate da história de filmes populares rejeitados pelos politizados cinemanovistas.
Desde a fase heroica da cinefilia, nos anos 1950 e 1960, ele se adapta às mudanças tecnológicas. “No início dos anos 1970 seria abusar muito do futurismo imaginar que um dia pudéssemos ver e ter em casa filmes de nossa preferência, mas aí veio o VHS, o DVD, e, agora, o streaming. Parafraseando o efeito do observador formulado por Heisenberg, o modo de consumir muda a percepção do consumidor. A cinefilia se expandiu, a ponto de justificar a instituição de cursos dedicados ao estudo teórico e prático de cinema em universidades”, afirma.

“Hoje existem milhões de críticos na internet, a atividade vulgarizou-se consoante ao truísmo de que qualquer um pode ser crítico de cinema. A tão lastimada infantilização do cinema americano é parte dessa mudança. Isso também explica a perda da aura do crítico de cinema.”

Sérgio Augusto firmou o seu espírito de ensaísta numa costura de história cultural e memórias de leitor e espectador. O Pasquim lhe deu, em boa medida, a ginga de vestir com humor os seus juízos críticos. Esse estilo tem a cara de seu próprio papo, que confere um sentido mais elevado ao esporte de jogar conversa fora, pois, em seu caso, melhor seria dizer jogar conversa dentro, pela erudição sem solenidade.

No prefácio, o crítico Paulo Roberto Pires aponta a sua filiação: “Sérgio Augusto é, até onde sei, o único filho intelectual de um estranho casal formado pela Cahiers du Cinéma e a New Yorker. Quem é o pai ou a mãe não faz diferença, já que puxou a ambos”.

Uma suspeita de maternidade pode recair sobre a americana Pauline Kael, “a Maria Callas da crítica de cinema”, cujas virtudes de estilo são listadas no livro. “Sua prosa era um luxo: viva, coloquial, distinta, esbravejante, isenta e alérgica a modismos e jargão acadêmico. Sintagma, significante e diegético não faziam parte do seu léxico.” À exceção de “esbravejante”, todo o resto também se aplica aos textos de “Vai Começar a Sessão”.

Nas leituras da revista francesa Cahiers du Cinéma, ele se divertia com o quarteto mágico Truffaut, Godard, Rohmer e Rivette, mas admirava sobretudo os críticos veteranos André Bazin, Jean Domarchi, Jean Douchet e André S. Labarthe.

A coletânea realça o prazer de ligar o cinema às demais artes. Há ensaios sobre o compositor alemão 
Richard Wagner nas trilhas de filmes, o fracasso de adaptações de Thomas Mann e o gosto cinéfilo do antropólogo francês Levi-Strauss.

A mescla de crítica e memória se manifesta, com mestria, nos textos sobre Moniz Vianna, Jeanne Moreau, a relação do cinema novo com os Cahiers, Sharon Tate, William Wyler e o fla-flu Jean Renoir x René Clair, ao passo que demonstra a sua força analítica no exame das obras de Luis Buñuel e Éric Rohmer e do crítico Paulo Emílio Sales Gomes.

Nos últimos anos, a escalada de uma “mentalidade fascista” vem preocupando Sérgio Augusto, observador diário da política. “Nunca houve um governo mais ostensivamente obscurantista que o de Bolsonaro. Nem a ditadura militar, que, afinal de contas, era explicitamente um regime autoritário, fruto
de um golpe armado”, afirma.

“Collor quase acabou com a indústria de filmes. O estrago bolsonarista promete ser bem mais extenso e profundo. Nosso cinema, que vive uma das melhores fases de sua história, não merecia esse infortúnio.”
O cerco aos cineastas tem mais de um antecedente histórico. “No Estado Novo o governo também perseguiu filmes que exibissem nossas misérias sociais, incentivou o culto ao trabalho e a supostos heróis da pátria. Orson Welles sofreu pressões por filmar as favelas cariocas no malfadado ‘It’s All True’. Tais pressões são cíclicas”, avalia o crítico.

Ele lista outras vítimas da censura em períodos democráticos ou autoritários: “Rio 40 Graus”, de Nelson Pereira dos Santos, em 1955; “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha, em 1964; e, no governo José Sarney, “Eu Vos Saúdo Maria”, de Godard.

Vai Começar a Sessão: Ensaios sobre Cinema Sérgio Augusto

  • Quando Lançamento nesta quinta (19), às 19h
  • Onde Livraria Argumento (r. Dias Ferreira, 417, Leblon, Rio de Janeiro)
  • Preço R$89,90 (438 págs.)
  • Editora Objetiva
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