“Boa noite, onde quer que vocês estejam. Vamos combinar que, de fato, isto é muito estranho.” Foi assim que o maestro Simon Rattle se dirigiu às câmeras ao entrar no palco da Filarmônica de Berlim.
As restrições à circulação por causa da Covid-19 ainda não eram tão rigorosas a ponto de a orquestra não poder se encontrar, mas já impediam a aglomeração de público.
Cancelado o concerto presencial, a orquestra e seu convidado ilustre —Rattle foi regente titular do grupo até 2018— se apresentaram para uma sala totalmente vazia.
Transmitido de graça em tempo real, o concerto transpareceu certo desespero nas notas da “Sinfonia” de Berio e do “Concerto para Orquestra” de Bartók —este último escrito durante a Segunda Guerra por um artista exilado e isolado por uma doença letal.
A suspensão total de concertos no mundo veio em seguida. Além das perdas econômicas, ela também provoca um “deficit sonoro” sem precedentes.
Basta vermos São Paulo, onde, em menos de duas semanas, foram cancelados o show de Pat Metheny, recitais do pianista Paul Lewis, do Trio Wanderer e a ópera “Aida”.
A disponibilização gratuita do acervo digital da Filarmônica de Berlim durante um mês —não deixem de ver a magistral interpretação da “Sexta Sinfonia” de Mahler pelo atual regente titular, Kirill Petrenko— não é caso isolado.
Neste momento, o Metropolitan de Nova York oferece sem custo uma ópera a cada dia —os vídeos ficam disponíveis por 24 horas—, incluindo uma semana inteira dedicada a Richard Wagner, e a própria abertura da temporada de 2020 da Osesp —que marcou a estreia de Thierry Fischer como regente da orquestra— também pode ser vista.
Nesse cenário, há ao menos dois aspectos que se impõem à análise. O primeiro está ligado ao que ocorre com a experiência acústica quando se passa de um concerto ao vivo para um registro em vídeo.
Com recursos tecnológicos sofisticados —muito superiores aos que temos em nossos gadgets— é possível simular com qualidade, mas nunca reproduzir exatamente, a sensação do ao vivo. Sutilezas da projeção do som acústico no espaço e a integração entre músico, instrumento e sala são impossíveis de capturar.
Se até o final do século passado bons sistemas de som eram acessíveis à classe média, hoje nossos celulares caros não são desenhados para as frequências graves. Também é baixa a qualidade no streaming (em especial nos planos não pagos).
Mas há um segundo ponto. A disponibilização gratuita de atrações não quer ser um presente aos entediados em quarentena, mas o contrário. É a forma de chamar atenção, de órgãos públicos e privados, para as trágicas consequências do cancelamento de uma temporada de concertos.
Por isso algumas dessas orquestras têm sugerido a doação do valor dos ingressos cancelados para a própria orquestra —a Sinfônica de Chicago é um exemplo. E é mais o desespero do que a generosidade que move tantos músicos a divulgar de graça vídeos, aulas e lives.
O breve discurso de Rattle insiste no fato de que, se tivermos mesmo que viver distantes uns dos outros por tempo indeterminado, precisaremos de música mais do que nunca. Mas o inverso também vale —separada de seu fundamento comunitário, a música, agora, também necessita de todo o cuidado e suporte.
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