Ambição impulsiona e derruba Childish Gambino em seu mais novo disco

Lançado sem aviso prévio, '3.15.20' soa como uma mistura bagunçada, mas instigante da biblioteca do rapper no Spotify

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3.15.20

  • Onde Nas plataformas de streaming
  • Autor Childish Gambino
  • Produção Donald Glover, DJ Dahi
  • Gravadora RCA Records

Donald Glover não é um artista comum. De sua memorável participação como ator na sitcom “Community” ao single multivencedor de prêmios Grammy “This Is America”, há uma originalidade que puxa os olhares atentos da indústria do entretenimento a qualquer lançamento do artista.

Seu novo disco de inéditas, “3.15.20”, saiu sem aviso prévio num site chamado Donald Glover Presents, mas não permaneceu disponível por mais de 12 horas. Talvez pela pandemia do novo coronavírus, só chegou às principais plataformas de streaming uma semana depois, no dia 22 de março.

Tão colorido quanto a mente de seu criador, “3.15.20” —assinado por Childish Gambino, persona musical de Glover— é um passeio um tanto bagunçado por suas referências mais latentes, de Prince e Stevie Wonder ao trap de Atlanta, sua cidade natal e atual capital informal do rap americano.

A maioria das músicas de “3.15.20” foi gravada em sessões espaçadas e espalhadas ao longo dos últimos anos. Gambino trabalhou com seu produtor de longa data, DJ Dahi, além do compositor sueco de pop Ludwig Goransson, outro colaborador frequente.

Até por isso, “3.15.20” é também um disco autorreferente, que capta um pouco de tudo que o rapper fez na música ao longo da última década. Em faixas como “32.22”, ele lembra o caos com batidas industriais de Kanye West em “Yeezus”, mas também do álbum que pôs Gambino no mapa da música, “Because the Internet”, de 2013.

Nas mais solares, como “19.10” e “42.26” —esta última, originalmente lançada em 2018, com o nome “Feels Like Summer”—, ele soa como “Kauai”, seu álbum curto de 2014 feito com a ajuda de Jaden Smith. No meio de tudo, ainda resgata o soul e o funk dos anos 1970 como havia feito em “Awaken, My Love!”, seu trabalho mais aclamado, de 2016.

Musicalmente, vale lembrar, Gambino nunca foi unanimidade. Ao contrário do trabalho na série “Atlanta” —uma das produções de TV mais originais da década—, criada e protagonizada por ele, sua carreira como rapper e cantor sempre teve ideias e músicas bastante respeitadas, mas que poucas vezes renderam discos memoráveis de cabo a rabo.

Seu trabalho mais conhecido talvez seja o single “This Is America”, cuja força está muito atrelada a um produto audiovisual, o clipe marcante que acompanha a canção. Ainda assim, “Awaken, My Love!”, que saiu no auge de seu sucesso com “Atlanta” —incluindo prêmios Globo de Ouro—, levou Gambino a um status de astro da música pop, com tamanho para fechar um dos dias no Coachella do ano passado, isso conforme sua carreira no cinema crescia com um papel no remake de “O Rei Leão” e outro num dos novos “Star Wars”.

Mas o disco de 2016, apesar dos ganchos contagiantes, dos falsetes surpreendentes —segundo ele, sem efeitos adicionais de estúdio— e do groove preciso, o álbum era muito mais um olhar delicado para o passado da música negra americana, uma obra vintage, do que algo que nossos ouvidos nunca escutaram. A sensual “Redbone”, maior hit do disco, é o grande exemplo.

Agora, “3.15.20” chega como a mistura de sua faceta contemporânea, o rap espirituoso e eletrônico que reflete o lado menos hedonista do trap de Atlanta e aquilo que faz sua mente, o groove setentista do funk e o romantismo do soul e do R&B. É como se Gambino tentasse soar como os álbuns favoritos de sua biblioteca do Spotify, de Migos a Kanye West, de Prince ao Parliament-Funkadelic —às vezes ao mesmo tempo.

Essa abordagem, aliás, é bastante millennial, considerando a geração que cresceu com acesso à internet e, portanto, a quase tudo que foi produzido na história da música a um clique de distância. Em “35.31”, com uma melodia pop anos 2000 grudenta, por exemplo, Gambino soa como uma versão comportada do 100 Gecs —duo americano que se destacou no ano passado explorando esses territórios.

Em “Algorhythm”, segunda faixa do álbum, esse conceito fica escancarado. É como se ele tentasse desconstruir o balanço de James Brown nas mãos de Kanye West, ou as harmonias esperançosas de Stevie Wonder por cima das batidas menos convencionais de Travis Scott (em “Time”, dueto com Ariana Grande).

“Tão assustador, tão binário/ Zero ou um/ Gostar ou desgostar, canário numa mina de carvão/ Sonho em cores, não em preto e branco”, ele canta em “Algorhythm”.

Gambino já provou que tem tudo isso dentro dele e, por isso, “3.15.20” não soa forçado. Ainda assim, há uma dose de pretensão que faz com que o trabalho entregue menos do que anuncia.

Da capa em branco aos títulos das faixas, com números em referência aos algoritmos e samples retirados do sistema operacional de um computador, “3.15.20” parece esconder o ouro. Após quase uma hora, contudo, o que temos é um clímax divertido, mas nenhuma reviravolta de tirar o fôlego —como no episódio “Teddy Perkins”, de “Atlanta”.

Ainda que haja coragem e criatividade na esquisitice de Gambino, o ponto alto de “3.15.20” acaba sendo sua música menos esquisita. “12.38” é um R&B moderno, com batida arrastada, falsetes e rimas, mudanças de andamento, acordes e samples suaves.

O rapper Ink e a cantora Khadja Bonet contribuem com a música, mas quem quem rouba a cena é o trapper 21 Savage. Já na parte final de “12.38”, ele toma para si a faixa com versos curtos e um flow relaxado, cantando com a tranquilidade de quem, como Savage rima, ficou rico sem precisar vender crack.

Outros bons momentos incluem a dramática “24.19”, uma declaração de amor e agradecimento a uma garota que ainda acredita em contos de fada, e “19.10”, com um andamento que esbarra no house, opondo texturas mais sujas a ganchos melosos.

Se “3.15.20” soa ousado e instigante, pop e desafiador, por outro, é mais um disco em que Gambino falha em equilibrar seus momentos mais e menos inspirados. A sensação é de que a mesma ambição artística que o impulsiona também o derruba.

Ainda assim, como em boa parte de sua produção, é mais interessante ouvir Gambino tentando —acertando e errando— do que a maioria dos caçadores de tendências, que correm atrás do pop para raramente alcançá-lo. Para o bem ou para o mal, Donald Glover não é um artista comum.

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