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Canal expulso da Twitch, Xbox Mil Grau leva guerras culturais a mundo dos games

Streamer é acusado de racismo enquanto PlayStation, Xbox e Nintendo se manifestam em favor do Black Lives Matter

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São Paulo

Se a expressão "guerra cultural", que está na moda já há várias estações, tem permeado toda a indústria cultural, os videogames não são exceção. No Brasil, a última semana deu pano para a manga.

Num sábado em que manifestações, virtuais e presenciais, ligadas ao Black Lives Matter só cresciam, um membro de um famoso canal de games no YouTube preferiu postar no Twitter uma montagem em que se lia "o que pessoas negras estão fazendo hoje/ o que pessoas brancas estão fazendo hoje". De um lado, uma foto de uma pessoa negra próxima a um carro em chamas. Do outro, astronautas brancos em simulador da SpaceX.

A postagem do streamer XCapim360, do canal Xbox Mil Grau, que também faz transmissões na Twitch, vinha com a legenda "vai dar choro ou não?".

Chief, do Xbox Mil Grau, canal que foi excluído do YouTube e da Twitch
Chief, do Xbox Mil Grau, canal que foi excluído da Twitch - Reprodução/Twitter

Enquanto notas de repúdio e expulsões não vinham, as tags #XboxApoiaRacista e #TwitchApoiaRacista ululavam pelo Twitter —esta última chegou aos trending topics.

A Xbox Brasil se posicionou em seguida e passou a exigir que os youtubers parassem de usar o nome da marca em seus canais. "O conteúdo da conta Mil Grau não reflete nossos valores fundamentais de respeito, diversidade e inclusão. Nós já exigimos a remoção imediata da nossa marca dos seus canais, por meio das empresas de redes sociais." A fabricante não diz se entrará na justiça.

No dia 3 de junho, o youtuber também foi expulso da Twitch, a mesma plataforma de streaming de games que baniu o filho 04 de Bolsonaro, Jair Renan, que disse que pandemia é história da mídia e que coronavírus é só uma gripezinha.

A Twitch não confirma se baniu o usuário especificamente por causa da postagem racista e nem se a suspensão é permanente ou temporária. A empresa apenas afirma que "conduta de ódio não é permitida na Twitch".

Posteriormente, o YouTube também entrou na briga. "Com as denúncias de usuários, tomamos conhecimento de conteúdos no canal Xbox Mil Grau que violam nossas políticas. Os vídeos foram removidos e o canal está permanentemente suspenso do programa de parcerias do YouTube."

Em comunicado, o canal Xbox Mil Grau escreveu que "jamais cometeu atos de racismo". Tenta justificar dizendo que o seu conteúdo é recomendado para maiores de 18 anos. "Fazemos brincadeiras e piadas conhecidas como 'humor negro'." E arrisca uma explicação: "No dia 30 de maio, um dos streamers repostou um meme em seu perfil pessoal, no intuito apenas de polemizar".

Um dos principais combustíveis que movem o canal é um ódio ao PlayStation —e em favor da concorrente da Microsoft. Num dos vídeos, uma retroescavadeira destrói consoles da Sony e uma foto do designer de games Hideo Kojima.

O membro do canal mudou o nome de usuário no Twitter para inserir um spoiler —falso, diga-se— do jogo de PlayStation "The Last of Us Part 2", que será lançado no próximo dia 19.

A provocação ao jogo não parece ter sido por acaso, já que o game toca em temas centrais das guerras culturais: gênero e sexualidade (e apocalipse zumbi, claro, que é mais um pano de fundo).

Com personagens lésbicas e trans, o jogo tem sido chamado por gamers conservadores de "lesbians of us", e é acusado de propagar a chamada "ideologia de gênero", enquanto memes com imagens vazadas do jogo original se espalham pelo 4chan e pelo Twitter.

Cena do game 'The Last of Us Part 2'
Cena do game 'The Last of Us Part 2' - Divulgação

Não é a primeira vez que um jogador é banido de plataformas em meio a polêmicas sobre discurso de ódio. No ano passado, o jogador ucraniano de "Counter-Strike" Oleksandr Kostyliev, o S1mple, que tem 1,5 milhão de seguidores na Twitch, foi bloqueado temporariamente com a acusação de ter feito comentários homofóbicos.

A streamer americana Kacey Cabinets, a Kaceytron, com 511 mil seguidores, foi bloqueada por fazer piada com o coronavírus: "a gente devia tentar espalhar o máximo possível, porque o mundo seria um lugar melhor sem pobres e velhos". Apenas para dar alguns exemplos.

No mundo real, as fabricantes de games têm dado sinais de que escolheram um lado, ainda que pontualmente.

Seguindo os passos do braço musical da Sony, a PlayStation adiou um evento sobre o novo console da marca, ainda a ser lançado, e postou um texto em apoio ao Black Lives Matter, seguido pela hashtag do movimento, no dia 1º. A concorrente Xbox foi lá e retuitou. A Nintendo demorou um pouco mais e publicou no dia 3 um comunicado solidário à comunidade negra.

A Rockstar Games bloqueou temporariamente seus jogos online, incluindo "GTA" e "Red Dead", também em apoio ao Black Lives Matter, no dia 6 de junho.

"Você só tem guerra cultural quando reúne três elementos: raça, sexualidade ou comportamento", disse, em entrevista há dois anos, Eduardo Wolff, doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo e autor de um livro sobre o fenômeno nos Estados Unidos e no Brasil.

Os streamers de games podem ser entendidos como uma espécie de performers, e, para muitos deles, a linguagem "politicamente incorreta" no intuito "apenas de polemizar" é um modus operandi.

As recentes tentativas de distanciamento das marcas desse tipo de discurso, aliadas a um crescimento da presença de temáticas identitárias nas narrativas dos jogos, ajudam a entender o lugar dos games no mapa das guerras culturais.

Comportamentos racistas ou outros discursos discriminatórios não são uma novidade no mundo dos games, conta a professora Lynn Alves, da Universidade Federal da Bahia, que coordena o grupo de pesquisa Comunidades Virtuais. "A novidade é que as pessoas estão se manifestando mais, dentro do universo dos games, contra questões que envolvem racismo, discriminação de gênero, homofobia."

É como se fosse o momento do basta, num espaço que até então era caracterizado por permitir agressividade contra jogadoras mulheres, negros, nordestinos e homossexuais, diz Alves.

"Trazer personagens trans e lésbicas [aos games] também é algo esperado. Claro que num primeiro momento gera um estranhamento por parte de alguns jogadores mais conservadores, mas isso é o que está posto. É uma tendência natural já que os jogos são narrativas audiovisuais", diz a professora, traçando um paralelo com as atuais temáticas de filmes e séries.

Para Gilson Schwartz, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e diretor da Games For Change América Latina, "a pandemia e a praga das fake news mostram que a digitalização tóxica precisa urgentemente ser combatida". "Isso tudo vai chegar ao universo dos games, que ainda é dominado por homens brancos de classe média com expectativas de dominação e uso indiscriminado da violência simbólica para dar conta da complexidade dos problemas."

"Acredito que há uma guinada nas indústrias criativas", diz. "A combinação de demanda do mercado e intensificação da criatividade com causas sociais e culturais vai ganhar espaço. É o único horizonte para superar o discurso de ódio. Mercado com educação e criatividade funcionam mais que a coerção."

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