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Cinema

Novo filme de Spike Lee, 'Destacamento Blood' quase apaga o desastre militar americano

Longa sobre a Guerra do Vietnã estreia na Netflix em meio aos protestos do movimento Black Lives Matter

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Denilson Lopes

Destacamento Blood

  • Quando Estreia sexta (12)
  • Onde Na Netflix
  • Elenco Chadwick Boseman, Jean Reno, Paul Walter Hauser
  • Produção Estados Unidos, 2020
  • Direção Spike Lee

O oportunismo e o senso de oportunidade tornaram possível a longeva carreira de Spike Lee dentro da indústria hollywoodiana —diga-se de passagem, muito rara, se não única de um diretor afro-americano até agora.

No ano passado, Spike Lee recebeu o Oscar de melhor roteiro adaptado por “Infiltrado no Klan”, prêmio que seria mais justo ter ganho pelo roteiro de “Faça a Coisa Certa”, de 1989. O troféu recente e a atenção recebida depois dele certamente devem ter estimulado Lee a um projeto mais ousado que resultou em “Destacamento Blood”, que estreia nesta agora na Netflix.

Sua carreira se firmou por um olhar entre o irônico e o dramático sobre as relações afetivas em Nova York, em especial sobre o Brooklyn, onde nasceu, cresceu e trabalha. Nos últimos anos, Lee fez filmes eficientes mas pouco pessoais, inclusive fora de uma ambiência afro-americana, caso de “A Última Noite”, de 2002. O ocaso na indústria parecia ser o horizonte de sua carreira.

A biografia "Malcolm X", de 1992, foi uma escolha ousada, sustentada pelo carisma de Denzel Washington e que não desqualifica a violência como arma política no momento em que se poderia esperar mais um filme sobre Martin Luther King, o reverendo pacifista, respeitável e mais palatável para a América liberal. Fazer um filme sobre Malcolm X foi uma resposta ao presente e à história da população afro-americana nos Estados Unidos.

Infelizmente, não é o que acontece com “Destacamento Blood”. Seu projeto mais ambicioso desde “Malcolm X” exibe a volta de veteranos afro-americanos ao Vietnã numa rocambolesca procura pelos restos mortais de seu amigo e líder, morto em combate, e por barras de ouro que deixaram enterradas.

Diante do recente e brutal assassinato de George Floyd e das manifestações geradas a partir de mais uma morte realizada pelas forças policiais, algo comum nos Estados Unidos e no Brasil, a Netflix lança de, forma oportuna e oportunista, “Destacamento Blood”.

Se Spike Lee se arriscou ao fazer um filme sobre Malcom X, conjugando espetáculo e política, se aliando a uma nova geração de diretores e ativistas americanos, cujo horizonte não seria a mera integração na história e na sociedade americanas, algo diferente acontece em “Destacamento Blood”.

O longo filme, de 156 minutos, é sobrecarregado por arquivos de época, falas de Muhammad Ali e de Angela Davis, na intenção de situar uma história particular no contexto mais amplo da história dos Estados Unidos e da presença dos afro-americanos desde a escravidão ao movimento Black Lives Matter.

Com problemas de edição, como elipses inesperadas e alongamentos desnecessários, o filme é embalado pelas músicas do fundamental álbum "What Is Going on", lançado por Marvin Gaye em 1971, que tem as canções mais suaves e elegantes para falar de violência. Essa lição também Spike Lee não segue. O novo longa se sustenta em atuações corretas, mas sem destaque, em meio às belas paisagens do Vietnã e às imagens metropolitanas de Ho Chi Minh, mas com pouco uso dramático do espaço.

Logo no início, a festa descontraída em que que os veteranos adentram com um cartaz de “Apocalypse Now” ao fundo é um achado irônico que me fez lembrar a sátira de “A Hora do Show”, de 2000.

Mas, na maior parte do filme e nos seus muitos personagens, o diretor leva um pouco a sério demais a sua história —a ponto de culminar nos monólogos para a câmera de Paul, papel de Delroy Lindo, veterano que não se inseriu na sociedade quando voltou aos Estados Unidos, no meio de uma família dilacerada, e eleitor de Donald Trump. Ele vê o amigo morto e repete a palavra “loucura”, como em uma paródia de Marlon Brando no filme de Coppola, que repete a palavra “horror” não só tomado por esse sentimento, mas encarnando o horror colonial pela palavra, pelo corpo, pela própria encenação de um fim de mundo.

Não parece ser por acaso que a escolha do final seja pela presença de Martin Luther King em uma fala sobre a integração afro-americana ou que a última palavra pronunciada no filme com a apresentação do elenco seja “be safe”. As minorias sempre pagaram um preço pela segurança americana. Sintonizado com nosso tempo, Spike Lee está mais interessado na nação do que nas relações coloniais por trás da Guerra do Vietnã.

De bons sentimentos e boas intenções políticas o inferno das medianias e mediocridades está cheio. Nem sempre estamos à altura dos fatos que vivenciamos nem conseguimos evocar o passado de forma que abra novas perspectivas para o presente. A urgência não justifica o bom-mocismo simplificador.

“Destacamento Blood” quase apaga o maior desastre militar americano e seu fracasso colonial ao terminar em uma grande conciliação sentimental de pais e filhos, mortos e vivos, vietnamitas e americanos, negros e brancos. O épico vira grandiloquente, o trágico só consegue ser pomposo. Ainda teremos que esperar por um filme que esteja à altura da experiência dos afro-americanos na guerra do Vietnã.

Denilson Lopes é professor da Escola de Comunicação da UFRJ

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