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Autodefesa como reação à violência do Estado é tema de livro premiado

Elsa Dorlin, pensadora de questões de gênero e raça, atualiza discussão sobre atos de rebelião contra desigualdades

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Marilene Felinto

Escritora, é autora de "As Mulheres de Tijucopapo" e mantém o site marilenefelinto.com.br

Se você é vítima da violência sexista ou sexual, ou por pertencer ao grupo de pessoas racializadas e discriminadas pela sua classe, seria direito seu autodefender-se dos ataques das classes opressoras e da violência de Estado, a policial e a institucional.

E não seria justificável você se defender também com emprego de violência? Afinal, seu corpo —antes de ser objeto de controle do Estado— é propriedade sua, ele que abriga sua vida.

Obra do designer e artista visual americano Emory Douglas, que retratou a luta dos Panteras Negras Divulgação - Divulgação

Essas questões não são novas no desenvolvimento das sociedades contemporâneas, mas são atualizadas e aprofundadas por Elsa Dorlin nos oito capítulos deste “Autodefesa - Uma Filosofia da Violência”.

São trazidas ao debate no contexto da desigualdade de direitos, a partir da comparação que ela expõe entre a defesa “de si” e o conceito jurídico do “direito” de legítima defesa. Este último é direito exclusivo dos proprietários.

Como aponta Judith Butler no prefácio ao livro, apenas os detentores de propriedade têm o “direito” reconhecível de exercer a autodefesa, de se servir da violência para proteger seus bens. Mas, e quanto àqueles sem propriedade, pergunta ela, que não são considerados sujeitos plenos de direitos nos termos da lei?

Um exemplo claro dessa desigualdade de condições para preservação da própria vida é, conforme Butler, o das populações negras intimidadas, espancadas ou mortas que, ao se defenderem da violência policial racista, têm seus atos de resistência mal interpretados como “atos de agressão”.

O aparato penal instituído pelo “contrato social” (centrado na desigualdade) acaba por transformar essas populações em réus, quase como “lei natural” que privilegia os grupos sociais dominantes.

Elsa Dorlin, pensadora das questões de gênero e raça, tem apenas 46 anos e é professora de filosofia política em Paris. Neste texto premiado, publicado na França em 2017, ela traça uma trajetória das práticas de autodefesa ao longo da história, desde o movimento das sufragistas anarquistas inglesas, no início do século 20, que lutavam jiu-jitsu para se defender.

Aborda também a rebelião dos judeus insurgentes do gueto de Varsóvia, que optaram por “morrer em combate”. Daí segue para o ativismo dos Panteras Negras americanos, que surgiu nos anos 1960, partidário da autodefesa armada contra a violência policial.

A incursão seguinte da autora é nas patrulhas de autodefesa queer, também nos Estados Unidos, nos anos 1970. Por fim, Dorlin chega aos anos 1990, quando analisa o caso de Rodney King, jovem afro-americano espancado barbaramente pela polícia de Los Angeles por “desacato” e cujos algozes foram absolvidos.

Qualquer semelhança com o assassinato recente do cidadão negro George Floyd ou com a execução do músico negro Evaldo dos Santos Rosa, metralhado com 80 tiros pelas forças do Exército no Rio de Janeiro, em 2019, não é mera coincidência.

O estudo de Dorlin é esclarecedor. Mas não se espere um texto simples. Não prega a luta armada, embora deixe implícito que se trata de uma prática a ser desenterrada hoje.

O texto é denso, investiga o direito de propriedade a partir do pensamento de Hobbes e Locke. E as questões centrais são analisadas à luz da constituição da subjetividade do indivíduo subalterno, conforme os ensinamentos de Frantz Fanon e Michel Foucault.

O que Elsa Dorlin destaca é o que ela chama de “as éticas marciais de si”, em oposição à tradição jurídico-política dominante da legítima defesa (prática de poder que autoriza a necropolítica estatal).

Embora tenham sua história ocultada, diz Dorlin, as éticas marciais de si atravessaram os movimentos políticos e as contracondutas contemporâneas com surpreendente força de resistência.

São elas a única ferramenta possível na luta pela manutenção do corpo vivo quando se é alguém que se encontra na “zona do não ser”, como diz Fanon, do não ser reconhecido como sujeito de direitos, por sua condição de classe, de gênero ou de raça.

Autodefesa - Uma Filosofia da Violência

  • Preço R$ 69,90 (320 págs.)
  • Autor Elsa Dorlin
  • Editora Ubu e Crocodilo
  • Tradução Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo
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