Ancine reprova contas de filmes de Xuxa e Didi de 15 anos atrás e escancara crise

Com 3.678 prestações de contas em aberto, agência multa obras antigas e é acusada de travar verbas destinadas ao setor

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Ilustração de película de cinema queimada

Ilustração Carolina Daffara Carolina Daffara

Belo Horizonte

Houve um tempo no Brasil em que se usava internet discada e piercing no umbigo. Eram os anos 2000, época em que nomes como Xuxa e Renato Aragão dominavam o circuito comercial do cinema brasileiro. E, assim como o Nike Shox está voltando com tudo, os filmes de Didi e da ex-monarca dos baixinhos também estão de volta —só que não no topo das bilheterias, mas nas páginas do Diário Oficial da União.

Desde o início do ano passado, a Agência Nacional do Cinema, a Ancine, vem reprovando as contas de filmes produzidos e exibidos há mais de uma década. Só em fevereiro deste ano, pôs a lupa sobre “Xuxa e o Tesouro da Cidade Perdida”, de 2004, “Didi, o Caçador de Tesouros”, de 2006, e “Trair e Coçar É Só Começar”, do mesmo ano, com Adriana Esteves.

A agência afirma, em nota, que tem entre suas prioridades projetos de empresas “que concentram a gestão dos maiores volumes de recursos públicos, especialmente aquelas incluídas dentre as situações de potencial conflito de interesses”.

Renato Aragão (à dir.) e João Paulo Bienemann no filme 'Didi, o Caçador de Tesouros', de 2006 - Divulgação

Um efeito colateral disso é que, enquanto analisa prestações de quase 20 anos atrás, a Ancine teve uma diminuição considerável nos editais de fomento direto ao audiovisual, desde o início do governo Bolsonaro, levando a uma quase paralisia do setor.

Segundo a decisão, as produções devem devolver integralmente aos cofres públicos o dinheiro recebido pela Ancine, com os valores corrigidos para os dias atuais, além de uma multa de 50% do total do débito.

“Não resta a menor dúvida de que nós [artistas] fomos considerados pelo presidente da república como persona non grata, com essa história de que mamamos nas tetas do governo. É um tiroteio para cima da gente”, diz Daniel Filho, que também produziu “Didi, o Caçador de Tesouros”.

É comum ouvir da classe artística que o governo Bolsonaro promove perseguição ao setor cultural. De fato, o presidente já demonstrou que não morre de amores pelos artistas e pelo audiovisual —os produtores de “Bruna Surfistinha” que o digam.

Também é fato que a crise da Ancine não é de hoje. A agência já nasceu com dificuldades institucionais e o problema da prestação de contas envolve outros órgãos, do Tribunal de Contas ao Supremo.

Na semana passada, a Ancine divulgou o total de projetos com prestação de contas em aberto —3.678 projetos, que representam juntos R$ 3,38 bilhões. A agência afirma que 20% disso está concentrado em dez produtoras. Desde março do ano passado, julgou 432 contas. Na mesma lista, a Ancine afirma que há 2.105 projetos em execução, sendo 1.518 de fomento direto e 587 de fomento indireto.

Em paralelo, os novos editais minguam. No ano passado, quando estourou a pandemia, houve só um edital —houve também uma linha de crédito emergencial em resposta à Covid-19. Em 2019, antes do coronavírus entrar no nosso vocabulário, foram só dois editais. Em comparação, o ano de 2018 teve 12 deles, em 2017 foram dez, em 2016 foram 16 e em 2015 foram 13.

A Ancine nega que a diminuição no volume de editais tanha a ver com o passivo de prestação de contas. "As limitações foram resultantes das irregularidades orçamentárias e financeira apuradas, e que foram saneadas", afirma, em nota.

“A gente tem que deixar claro que o passivo não é das produtoras. Obrigatoriamente as produtoras sempre entregaram as prestações de conta. O passivo é da própria Ancine —ela não analisou os projetos que estão acumulados”, diz Mauro Garcia, presidente da Brasil Audiovisual Independente, a Bravi, associação que agrupa quase 700 produtoras independentes no país.

Mas como a agência acumulou tantos projetos sem julgar as respectivas contas? A resposta é complexa.

A Ancine, que este ano completa 20 anos de fundação, já nasceu com um passivo de prestação de contas da Secretaria do Audiovisual, pertencente ao então Ministério da Cultura. “Em 2001, na criação da agência, sem qualquer estrutura, ela recebeu do MinC cerca de 1.500 processos. Esse foi o início deste acúmulo”, conta Vera Zaverucha, ex-diretora da Ancine.

Desde então, foram criados o FSA, o Fundo Setorial do Audiovisual e a Lei da TV da Paga. Essa lei, aprovada há dez anos, criou uma taxa paga pelas operadoras de telefonia, a Condecine Teles, que responde hoje por boa parte do volume do FSA. A lei também determinou uma cota mínima de produções nacionais a serem exibidas na televisão por assinatura.

“Com isso, o número de projetos aumentou sem que houvesse aumento de pessoal. Não havia como paralisar a aprovação de projetos. A falta de pessoal e a necessidade de cumprir com as quantidades exigidas pela legislação gerou esse aumento de processos na prestação de contas", diz Zaverucha. "Mas isso não é um privilégio da Ancine, é uma coisa comum em vários órgãos de governo.”

O Tribunal de Contas da União chegou a notificar a Secretaria Especial da Cultura e a Ancine para prestar esclarecimentos sobre "a paralisação em 2019 e 2020, da política de fomento direto à cultura" do Fundo Setorial do Audiovisual e do Fundo Nacional da Cultura em 2019 e 2020.

Duas semanas depois, a Ancine respondeu afirmando ter “insuficiência de recursos financeiros para o cumprimento dos compromissos de investimento assumidos pelo Fundo Setorial do Audiovisual” e “para o custeio de obrigações assumidas com os agentes financeiros do fundo”.

Mas então por que a Ancine está analisando projetos de décadas atrás justamente agora? Houve algum elemento catalisador? Sim, o nome dele é Tribunal de Contas da União. Em março de 2019, o TCU determinou que a Ancine deveria suspender o repasse de recursos públicos para o setor audiovisual caso não comprovasse ter condições de analisar toda a prestação de contas dos projetos aprovados pela agência.

Em novembro daquele mesmo ano, um novo modelo de prestação de contas apresentado pela Ancine foi aprovado pelo Tribunal de Contas da União. E, em março de 2020, foi aprovada a criação da Superintendência de Prestação de Contas e uma força-tarefa para tentar diminuir o passivo de prestação de contas, que até então somava 4.000 projetos.

Foi essa nova repartição que reprovou, neste ano, as contas de produções antigas como as de Renato Aragão e Xuxa, lançados na época que Sasha ainda era alfabetizada em inglês.

Sobre os casos específicos de “Xuxa”, “Didi” e “Trair e Coçar”, a Ancine não quis comentar. “As questões são tratadas e discutidas no âmbito de cada processo.” Procurado, um dos produtores envolvidos com os três filmes preferiu não dizer se vai recorrer da decisão.

Mas houve quem recorresse. Um deles é o projeto de desenvolvimento de roteiro para o longa “Zigurate”, aprovado pela agência em 2007. A diretoria colegiada da Agência Nacional do Cinema decidiu, em agosto do ano passado, reprovar as contas do projeto, lançado há cerca de 11 anos.

No fim de fevereiro, porém, a Justiça Federal decidiu que a Ancine não poderia condenar a produtora de audiovisual, depois de mais de uma década da aprovação do projeto, a devolver R$ 525 mil aos cofres públicos.

E, para quem já não achava essa história complicada o suficiente, a decisão trouxe à tona mais um imbróglio, dessa vez de natureza jurídica. Uma vez que essas prestações são tão antigas, há quem entenda que eventuais ressarcimentos ao erário deveriam prescrever --ou seja, a prestação de contas continuaria sendo rejeitada, mas a devolução do dinheiro e uma multa não seriam cobradas.

“O tema da prescrição do ressarcimento ao erário é antigo. Há estoques de prestações de contas em vários ministérios —estamos falando de estoque de projetos com dez, 20 anos”, afirma Aline Freitas, advogada especialista na área de cultura.

“A análise de prestação de contas é um processo normal e desejável, e a reprovação de contas uma situação passível de ocorrer em casos extremos, que não são a regra do setor”, afirma, em nota, a Associação das Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro, a API. “No entanto, o que vem ocorrendo na Ancine desde 2018, a partir da ação do TCU, é uma tentativa de inviabilização do setor audiovisual.”

“A Ancine vem criando uma situação de insegurança jurídica profunda no setor que pode tornar impraticável o fomento público à produção audiovisual", acrescenta a associação. "É impossível exigir de um produtor o cumprimento de regras criadas dez anos após a conclusão de um filme.”

Já houve entendimentos no STF em favor da prescrição do ressarcimento. “A gente está em um momento de assimilar essa nova informação, que vem do Supremo. É um terreno pantanoso, complexo, mas hoje parece inquestionável que sim, prescreve”, afirma Rafael Neumayr, advogado especializado em audiovisual, que atuou no caso “Zigurate”. Ainda se discute sobre o tamanho do prazo de prescrição e a partir de quando exatamente esse prazo começa a ser contado.

A forma como a atual diretoria da Ancine tem atacado o problema da prestação de contas tem sido criticada por pessoas do setor audiovisual, revelando uma certa animosidade entre a agência e o setor. Em vídeo postado no Instagram e no Facebook, o secretário especial da Cultura, Mario Frias, apresentou um chamado programa de integridade, levantando suspeitas sobre a lisura dos processos da agência.

Segundo Mauro Garcia, da Bravi, a Ancine e a Cultura sob o governo Bolsonaro têm “jogado coisas no ar para criar fatos políticos”. “A comunicação da forma como foi feita, além de marqueteira, é uma violência contra as empresas. Fala do passivo como se fosse uma dívida [das produtoras]. Se você não dá os devidos esclarecimentos, você pode cometer —como estão— ações levianas", afirma. "O passivo não é das produtoras.”

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