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Entenda como a crise da Ancine pode paralisar o cinema brasileiro

TCU determinou que agência busque nova forma de avaliar a prestação de suas contas

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Fernanda Montenegro no set de 'Central do Brasil', de Walter Salles, em foto  feita pelo diretor de fotografia Walter Carvalho; o filme é um dos maiores exemplos da produção da retomada
Fernanda Montenegro no set de 'Central do Brasil', de Walter Salles, em foto feita pelo diretor de fotografia Walter Carvalho; o filme é um dos maiores exemplos da produção da retomada - Walter Carvalho
São Paulo

A indefinição quanto ao futuro dos recursos públicos na atividade audiovisual no Brasil leva o setor a ponderar se o país não estaria à beira de voltar ao marasmo da era Collor —época que chegou a ter só dois filmes nacionais lançados por ano.

Por um lado, a visão catastrófica tem algum lastro. A Ancine, agência que fomenta e fiscaliza a atividade por aqui, foi emparedada pelo Tribunal de Contas da União e recebeu dele um um ultimato: ou muda a forma como fiscaliza as finanças dos projetos a ela submetidos ou está suspensa a liberação de verbas públicas. 

O TCU, que abriu uma sindicância para apurar como a agência fiscaliza o emprego de recursos, achou irregularidades e deu um prazo de 60 dias para que a entidade proponha uma nova forma de controle da prestação de contas de projetos audiovisuais.

A crise ameaça a permanência de Christian de Castro na presidência da Ancine. Na quarta (3), o deputado federal Alexandre Frota (PSL-SP) protocolou na Comissão de Cultura da Câmara um pedido para afastar o dirigente, “até que as coisas se resolvam”, segundo postou nas redes. E aventou a possibilidade de o Executivo já estar armando sua substituição pelo diretor Moacyr Góes ("Dom", Xuxa Abracadabra").

Ele, que conta com apoio do ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, é ligado ao Instituto Millenium, think tank liberal. Entre os outros nomes aventados estão o do advogado  Cleber Teixeira, ligado a Frota, e do diretor Beto Rodrigues, que tem apoio do setor.

Contra a visão catastrófica, pesa outra, mais pragmática. A indústria do audiovisual cresceu de maneira exponencial nos últimos 25 anos, desde que a produção foi retomada. Não parece crível, portanto, que será novamente escanteada sem algum tipo de salvaguarda.

A Ancine fala em receitas do setor na casa dos R$ 25 bilhões por ano e que área emprega cerca de 335 mil pessoas. Levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica da USP calcula que o cinema responda por 0,44% do PIB nacional. O mesmo estudo estima que até 70% dos filmes brasileiros exibidos entre 1995 e 2016 foram contemplados com alguma forma de incentivo público.

A dependência do Estado, como é regra na maioria dos países, explica o tombo que o setor pode levar caso as verbas sejam cortadas.

Isso explica por que produtores brasileiros estão paralisando a realização de projetos já aprovados ou buscando outras formas de completar seus orçamentos.

O paulista Paulo Boccato (“Tô Ryca”) disse que postergou um documentário, previsto para começar em maio. “Desisti até ver como isso vai afetar”, diz. Caso parecido é o do produtor carioca Júlio Uchoa (“S.O.S.: Mulheres ao Mar”), que tem um futuro filme de ficção na berlinda. “Só não digo que estou adiando porque estou trabalhando para achar recursos de outras fontes”, conta.

“Está todo mundo apreensivo, e de fato algumas pessoas estão segurando seus projetos”, resume Leonardo Edde, que preside o Sicav (Sindicato Interestadual da Indústria do Audiovisual, do Rio de Janeiro). Ele crê que a paralisação se deve mais a falta de informações, tanto é que na quarta (3) fez uma reunião com o TCU.

Outros dois produtores, que pediram para não ser identificados por temerem uma “caça às bruxas”, relatam situações parecidas para completarem seus filmes. Eles se queixam de que verbas já aprovadas e que deveriam ter sido liberadas foram retidas.

“Tem sido uma semana de trabalho perdida”, diz o sócio de uma produtora no Rio, que captou recursos. para um longa de ficção já filmado e aguarda verba para a finalização. “Só vamos tomar uma decisão a partir do momento que tivermos uma informação clara sobre o que vai acontecer.”

A Folha telefonou para a agência e ouviu de uma servidora, que pediu não ter o nome revelado, que a Ancine está paralisada e que a liberação de recursos depende de como será o desfecho do imbróglio envolvendo o TCU.

Em comum, os produtores se queixam da falta de transparência por parte da chefia da agência. 

Depois que o Tribunal de Contas publicou seu acórdão, na semana passada, a Ancine se limitou a publicar uma nota em seu site, informando que concorda com muitos dos pontos levantados pelo TCU e que adotou esforços “no sentido de agilizar, simplificar e desburocratizar processos.” Não fala nada da liberação de verbas já autorizadas para os projetos em andamento.

Tampouco se sabe o teor do plano da Ancine para atender às exigências do TCU. Produtores de cinema que tentaram se inteirar de como a agência direcionará seus esforços fizeram uso da Lei de Acesso à Informação, mas tiveram o pedido negado sob a justificativa de que o documento "deve ser considerado de acesso restrito". 

A decisão do Tribunal de Contas da União, que originou toda a celeuma, é um catatau de mais de 90 páginas e que é resultado de uma auditoria feita em 2017. 

O relatório, que destrincha irregularidades na forma como a agência fiscalizou as contas de alguns projetos, levanta casos ruidosos e nomes conhecidos do cinema brasileiro. Filmes como “À Deriva”, de Heitor Dhalia, “Ó Paí, Ó”, de Monique Gardenberg, e “Meu Nome Não É Johnny”, de Mauro Lima, são citados. 

Sobre o longa de Dhalia, por exemplo, o TCU aponta que os custos do filme excederam em R$ 994 mil o orçamento autorizado, “havendo sido apresentadas justificativas inaceitáveis para tão elevada extrapolação de gastos”. Entre os itens do rombo estão alimentação da equipe.

O parecer centra fogo no atual método usado pela agência para avaliar a prestação de contas, que o tribunal vê como sendo inconstitucional.

Regulamentada desde 2015, a metodologia chamada Ancine + Simples foi implementada para dar cabo do volume de projetos. Em linhas gerais, ela consiste em avaliá-los por amostragem, em vez de em sua totalidade. O TCU condena esse método.

“Não foi um plano que saiu  do nada, foi aprovado pela Controladoria-Geral da União”, diz o diretor André Klotzel, ex-integrante do Conselho Superior de Cinema. “E, agora, o setor ter que pagar por isso é um despropósito.” 

Servidores ouvidos pela reportagem afirmam que a agência trabalha hoje com um passivo na casa dos 3.000 projetos, isto é, de produções que ainda não tiveram as suas contas checadas. Cada uma delas pode envolver em torno de 15 mil notas fiscais.

Desde que o TCU instaurou a sindicância, a diretoria da agência deslocou mais pessoas para o setor da prestação de contas. Hoje, são cerca de 60 pessoas na área, entre servidores, contratados e terceiros. Não seria o suficiente para dar conta do passivo, argumentam os funcionários.

Há projetos de de antes de a Ancine ser criada, diz um servidor que pediu para não ser identificado por temer represálias. Segundo ele, a chefia da agência deixou de investir em tecnologia, a exemplo da Receita Federal, para checagem das notas.

Uma das alternativas seria o blockchain, sistema de codificação permite o registro de transações digitais numa plataforma criptografada e descentralizada. Permitiria a atualização em tempo real, e visível a todos, de como recursos são empenhados.

Procurado pela reportagem, Christian de Castro, presidente da Ancine, não foi encontrado para comentar as queixas dos servidores. Nem as recentes discussões envolvendo seu nome e postagens virulentas do deputado federal Alexandre Frota (PSL-SP).

Numa das mais recentes polêmicas, insufladas pelo imbróglio com o TCU, Frota fez críticas a Castro e ao padrinho político dele, o ex-ministro da Cultura, e atual secretário estadual de Cultura de São Paulo, Sérgio Sá Leitão, a quem chama de “passador de pano” de Michel Temer.

O infortúnio da Ancine ocorre num momento delicado para a cultura, que está sob escrutínio do governo de Jair Bolsonaro. Seu correligionário Frota tem encampado pautas do setor no Legislativo, mas não é ó único congressista de olho no imbróglio. 

Do outro lado do espectro ideológico, tanto o deputado Paulo Teixeira (PT-SP) quanto a deputada federal Alice Portugal (PC do B-BA) protocolaram na Comissão de Cultura da Câmara para uma audiência pública sobre o assunto. Solicitam que sejam ouvidos Christian Castro, o ex-presidente da Ancine Manoel Rangel, o presidente do TCU, José Mucio Monteiro, além de cineastas como Anna Muylaert. 

O impasse com o TCU não é o único problema que assola a agência de cinema. Corre, em segredo de Justiça, um inquérito contra Castro, e outros quatro integrantes da entidade. Em dezembro, a Polícia Federal cumpriu um mandado de busca e apreensão na sede da entidade e apreendeu computadores, HDs, livros contábeis e outros itens. 

Decano entre os produtores brasileiros, e testemunha de vários ciclos do cinema nacional, Luiz Carlos Barreto crê que a Ancine colhe os efeitos  de vir acumulando várias funções desde que surgiu, no governo FHC. “Absorveu tarefas de fomento, fiscalização, regulação e criou uma sobrecarga de que seus funcionários não conseguem mais dar conta."

Ele pondera também que na época em que foi criada, o país lançava 30 filmes por ano. Hoje, são mais de 150 títulos.“O Brasil nos trata como se fôssemos uma atividade artesanal, e não industrial”, afirma o nonagenário Barreto. “E no meio de tudo isso, viramosa Geni da opinião pública.”

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