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'Quo Vadis, Aida?', indicado ao Oscar, relembra genocídio na Bósnia que muitos negam

Longa, que concorre a melhor filme internacional, reconstitui massacre de Srebrenica, que matou 8.000 homens e meninos

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São Paulo

Quando o general Ratko Mladic, comandante das forças separatistas sérvias na Guerra da Bósnia, enfim aparece em cena em "Quo Vadis, Aida?", longa bósnio que concorre ao Oscar de filme internacional, Srebrenica, palco de uma das maiores carnificinas do conflito, já tinha sido tomada.

O prefeito fora capturado. A população, agarrado o que podia e se dirigido em hordas para um abrigo da Organização das Nações Unidas, a ONU, nos arredores da cidade —a entidade tinha designado Srebrenica como uma "zona de segurança". Os que restaram foram assassinados à queima-roupa.

Talvez porque já não havia mais um conflito, mas terra arrasada, Mladic lembra menos um militar e mais uma estrela de cinema ao pisar no lugar, acompanhado de um séquito de puxa-sacos e de um cinegrafista.

A presença do câmera chega a parecer irônica —ali está uma testemunha ocular da história num episódio que, apesar de considerado o maior massacre em território europeu desde a Segunda Guerra Mundial, com o genocídio de mais de 8.000 homens e meninos muçulmanos, não só é pouco lembrado no continente, como é negado por muitos na região da antiga Iugoslávia hoje.

Mas a cena é real, conta a diretora bósnia Jasmila Zbanic. "Se você procurar no YouTube, vai ver que eu praticamente transcrevi aquilo. Mladic era uma espécie de diretor-ator. Em frente às câmeras, era muito gentil com o povo, e você sente o prazer dele atuando", diz ela sobre o militar, condenado à prisão perpétua por crimes de guerra há quatro anos.

O câmera não é o único detalhe que "Quo Vadis, Aida?" reproduz de maneira fiel. Zbanic diz que buscou reconstruir minuciosamente cada um dos acontecimentos representados no longa, sobre uma tradutora —a Aida do título— que tenta de tudo para salvar os filhos e o marido ao perceber a inação da ONU diante dos invasores. "Li tudo o que pude e tentei checar todos os fatos com várias das fontes envolvidas."

O cuidado ainda se estendeu às filmagens, realizadas em segredo. Tudo isso para se proteger de possíveis ataques por parte dos que refutam que houve um genocídio durante a guerra que opôs os três principais grupos étnicos do país entre 1992 e 1995. Entre eles, o atual prefeito de Srebrenica, Mladen Grujicic. "Se eu cometesse qualquer erro, sei que haveria dezenas de reportagens e artigos criticando o filme."

Também a decisão de mostrar Aida anos depois do massacre foi inspirada em conversas com sobreviventes. "Um genocídio não se limita aos dias em que ele de fato aconteceu, mas inclui os seus ecos", diz Zbanic. "Muitas daquelas mulheres retornaram a Srebrenica e disseram ter feito isso porque aquele era o único lugar em que sentiam a presença dos seus filhos."

É em homenagem a elas, aliás, o nome do filme, retirado de uma passagem de evangelho apócrifo. Nele, São Pedro encontra Jesus ressuscitado e pergunta a ele "aonde vai?", "quo vadis?" em latim. Jesus responde que vai a Roma, ser crucificado novamente. Como ele, diz Zbanic, essas viúvas e mães órfãs de filhos que buscam conviver com seus algozes em vez da vingança têm algo de santas.

Até agora, poucos moradores da região conseguiram assistir ao filme. Em parte, por causa da pandemia —a sessão de estreia no país, por exemplo, teve só cerca de cem jovens, reunidos num memorial em Srebrenica. Mas também porque, segundo a diretora, várias salas de cinemas temem virar alvos da direita nacionalista caso exibam a produção.

Uma vitória no Oscar poderia mudar isso? Zbanic diz que, apesar de as vozes que negam o genocídio no país terem se calado quando veio a indicação ao maior prêmio de cinema do mundo, vencer de fato poderia tornar esses opositores mais estridentes.

Ganhar a estatueta significaria muito para os sobreviventes, no entanto. "É uma espécie de reconhecimento", diz a diretora, acrescentando que muitos estudos sobre traumas afirmam que uma das primeiras etapas para superar um evento do tipo ocorre quando ele é reconhecido por outros.

"Para muitos bósnios, só o fato de que muito mais pessoas estão assistindo ao filme agora é um grande passo. Não é uma questão de vaidade. É um processo de cura."

Quo Vadis, Aida?

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