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'A Porta' é 'Amiga Genial', de Elena Ferrante, numa versão vinda da Hungria

No lugar das particularidades sociais de Nápoles, livro de Magda Szabó esmiuça relação entre mulheres antípodas em Budapeste

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A Porta

  • Preço R$ 44,90 (256 págs.); R$ 29,90 (ebook)
  • Autor Magda Szabó
  • Editora Intrínseca
  • Tradução Edith Elek

Qualquer palavra que se use para descrever a natureza ou a dinâmica da ligação entre as duas personagens centrais de “A Porta”, romance da húngara Magda Szabó lançado agora pela Intrínseca, é insuficiente.

Até certo ponto, o livro examina o convívio —com os papéis (supostamente) predefinidos— entre Magda, uma escritora, e Emerenc, a quem ela contrata como empregada doméstica. Mas seu vínculo é sobretudo de afeto. Nele também há espaço, ao lado da ternura, da dedicação e da delicadeza, para a brutalidade, a condescendência e a intolerância.

As duas mulheres moram na mesma vizinhança —Emerenc, em uma casa cuja porta permanece fechada a todos os outros. A relação se torna mais e mais próxima com o passar dos anos, e elas, que não têm nada em comum além do apego a um cão chamado Viola que demonstram de formas muitos distintas, veem nascer esse afeto irregular e cheio de arestas.

mulher idosa em sala de estar
A escritora húngara Magda Szabó, autora de 'A Porta' - Bodo Gabor/Divulgação

Traduzido do húngaro pela também escritora Edith Elek, o livro cobre boa parte da história recente daquele país. Vários acontecimentos são desdobramentos de episódios que vão desde a Revolução dos Crisântemos —ocorrida logo após a Primeira Guerra Mundial, e que culminou na independência da Hungria do Império Áustro-Húngaro— até a Revolução Húngara de 1956.

É pela ótica de Magda, a narradora, que tantas vezes recorre à tragédia grega para dar sentido ao que acontece, que o leitor pode tentar decifrar Emerenc —cujo estranho comportamento é esmiuçado e cujos segredos, como aquilo que ela esconde atrás da porta, são pouco a pouco desvendados. Mas Magda nem sempre consegue ou deseja compreender Emerenc; muitas vezes Eurípides e Sófocles são insuficientes. O efeito é curioso. A narrativa se põe a meio caminho entre duas sensibilidades que entram em choque com frequência.

Segundo Magda, “Emerenc [é] a própria anti-intelectual”. O trabalho braçal, para Emerenc, é bem mais valioso do que o intelectual. Ainda hoje debatida por estudiosos marxistas, a divisão é, aos olhos da própria Emerenc, bastante simples. Para ela —que desde os 13 anos limpou, lavou e cozinhou para os outros e considera os patrões “vagabundos crônicos”—, homens “que não [manipulam] ferramentas” são “todos parasitas”. Não é difícil entender por que Magda, a despeito do paternalismo sem sentido que tantas vezes demonstra em relação à outra, é tratada como criança por Emerenc.

Muita coisa em “A Porta” autoriza uma comparação com a tetralogia napolitana, embora os livros de Elena Ferrante tenham sido publicados bem depois. Na raiz das divergências entre as duas personagens há diferenças de classe e de instrução —bem mais gritantes no livro de Szabó.

Ainda que as duas pertençam a diferentes gerações, é Emerenc, que deixou a escola cedo, a "amiga genial" de inteligência e firmeza incomuns. No lugar da Camorra e das particularidades do tecido social em um bairro de Nápoles, há as atribulações políticas e a coexistência em um microcosmo de Budapeste.

Emerenc odeia o poder e as honrarias. Não enxerga lados, embora não por causa de uma convicção religiosa. “Essa velha senhora não apenas não tem consciência patriótica, ela não tem consciência alguma, seu espírito luminoso brilha forte, mas na neblina”, diz Magda. Ou seja, Emerenc não discerne nada, não faz distinções. Isso inclui animais não humanos —somos todos animais, afinal, apenas, nas palavras dela, “menos perfeitos do que eles”.

É difícil dizer até que ponto elas modificam uma à outra. Com Emerenc, Magda descobre que “afetos não podem ser expressados de maneira contida, canalizada, articulada” e não se pode “determinar sua forma em nome de outra pessoa”.

No entanto, se no início Emerenc é necessária sem necessitar da ajuda de ninguém, ao final de duas décadas a situação muda. Para a narradora, que foi cuidada a vida inteira, cuidar pode, então, se mostrar um desafio grande demais. Eis uma lição que a personagem não aprendeu —que nunca esteve, no fundo, disposta a aprender.

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