Música satisfaz nossa fome por beleza, diz Cat Stevens, que é relançado com luxo

Artista fala de seus anos morando no Rio de Janeiro e a volta ao palcos após superar opiniões fundamentalistas

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São Paulo

O músico uma vez conhecido como Cat Stevens entre 1966 e 1978, depois como Yusuf Islam de 1978 a 2006, a seguir apenas como Yusuf até 2017, e nos últimos cinco anos como Yusuf/Cat Stevens, finaliza agora o relançamento de seus três principais álbuns em edições de luxo com extras.

Essa trilogia elevou Stevens ao estrelato no início dos anos 1970. Como um trovador inglês, em geral acompanhado apenas do violão, criou uma série de canções delicadas e de alcance mundial, sendo muito regravado por outros artistas.

Um sucesso interrompido precocemente em 1978, quando não apenas o artista se converteu ao islamismo como desistiu de se apresentar e se recusou a tocar instrumentos musicais por serem proibidos, segundo muçulmanos radicais.

homem branco de cabelo e barba pretos longos
O cantor e compositor britânico Cat Stevens em retrato dos anos 1970 - Divulgação

"Quando eu abracei o islamismo, eu estava feliz e realizado por ter encontrado uma vida que não fosse em cima dos palcos. E então eu ouvi algumas opiniões, você as poderia chamar de fundamentalistas, sobre a música ser proibida na comunidade islâmica. Para ser honesto, eu não queria ter dúvidas sobre o que era certo e errado, então simplesmente larguei tudo", conta ele, em entrevista direto de Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, onde passa parte do ano com sua família. Ele também tem residência em Londres, onde nasceu em 1948.

A partir dos anos 1990, Stevens foi gradualmente retomando sua carreira, depois de um hiato de quase 20 anos. Em 2013, tocou pela primeira vez no Brasil.

Agora, ele comemora os 50 anos de sua trilogia básica. A nova versão remasterizada de "Teaser and the Firecat", de 1971, chegou no mês passado às plataformas de streaming, com hits inesquecíveis como "Moonshadow", "Peace Train" e "Morning Has Broken". Lá fora, há diversas edições com muito mais material, culminando numa caixa de luxo com dois LPs, quatro CDs e um Blu-Ray.

O disco vem se somar aos boxes de "Mona Bone Jakon" e "Tea for the Tillerman", ambos de 1970 e relançados no ano passado, ao completaram 50 anos. Desse último, há "Wild World", "Father and Son", "Where Do the Children Play?" e "Hard Headed Woman", para ficar nas mais famosas.

"Vejo ‘Teaser and the Firecat’ como a Lua enquanto ‘Tea for the Tillerman’, antes dele, havia sido o Sol. Mas não acho que seja um disco mais sombrio. A Lua, veja bem, era brilhante o suficiente para eu ver minha sombra, conforme escrevi em ‘Moonshadow’. E, quando você ouve uma canção como ‘Morning Has Broken’, é impossível chamar isso de sombria."

Em relação a "Peace Train", outra grande canção do álbum, Stevens lembra que está sendo lançado também um livro infantil de mesmo nome, com sua letra e ilustrações de Peter H. Reynolds. "Eu amo ilustrações, mas quando vieram com a ideia desse livro, eles não me pediram que eu ilustrasse, o que achei legal da parte deles", diz Stevens. "Deixe algum outro fazer o trabalho."

Pouco depois de lançar a trilogia, Stevens pegou um avião e se mudou para o Rio de Janeiro. Uma das razões foi para fugir dos altos impostos cobrados pelo governo britânico, situação que aconteceu com muitos outros músicos.

"Havia impostos muito altos naquela época. Certamente esse foi um estímulo para minha mudança. Se você atingisse um certo patamar, eles cobravam 98% de impostos! Imagine o que os Beatles passaram", diz ele, que acabou destinando uma boa parte de sua fortuna à caridade.

"Fiquei por quatro anos no Rio, mas eu era mais um turista. Eu nunca realmente finquei raízes. Eu deveria ter aprendido português, mas esse é o problema com os turistas. Primeiro, aluguei uma ótima casa em um lugar chamado Barra de [sic] Tijuca, perto de Ipanema", conta Stevens, se confundindo um pouco com as distâncias cariocas.

"A casa era muito bonita e tinha sido desenhada por um arquiteto famoso chamado Zanine [José Zanine Caldas]. Pouco depois, quando resolvi que queria ficar, comprei um apartamento na Lagoa, com vista para o Corcovado."

"Mas eu não ia para a praia diariamente. Eu estava um pouco isolado e tomava um pouco de cuidado sobre onde ir. Eu acordava tarde para o café da manhã e o tomava na varanda. Para o almoço, a cozinheira fazia berinjela, minha comida preferida. Eu passava a maior parte do tempo escrevendo."

"Também tinha um pequeno grupo de amigos para sair, a maioria deles atores e atrizes. Ocasionalmente aparecia o Gilberto Gil. Eu ficava por períodos curtos no Rio. Nunca fiquei o tempo suficiente. Mas posso dizer que fiquei tempo o suficiente para ser comido pelos mosquitos", diz, rindo. Enquanto morava no Brasil, Stevens viajou para a Jamaica para gravar o álbum "Foreigner", de 1973.

Dois anos depois, aconteceu algo que mudou sua vida. Stevens estava nadando em Malibu, na California, quando quase se afogou em meio às ondas. "Foi uma mudança de rumo em minha jornada. A partir daquele momento, quando fui salvo no oceano por Deus, eu prometi mudar a minha vida e servir a ele. Depois disso, meu irmão me presenteou com um exemplar do Alcorão e esse foi o início de tudo."

Stevens diz que sempre sentiu uma obrigação em doar para caridade. "Se dão mais dinheiro a você do que necessário, você passa a dividir um pouco", diz o músico, que tem uma fundação chamada Peace Train e tem ligações com o Unicef. Além disso, ele, que estudou em colégio católico, foi responsável por abrir uma série de escolas muçulmanas na Inglaterra. Atualmente, ele dedica seu dinheiro a fornecer comida para refugiados em diversos países.

Nada disso, porém, impediu que ele tivesse problemas devido à sua religião. "Em 2004, eu fui convidado para uma gravação em Nashville, nos Estados Unidos, e me negaram a entrada. Ninguém nunca me explicou a razão, mas acho que foi um problema político. Meses antes, eu estava em Washington e fui convidado a encontrar George Bush [então presidente dos Estados Unidos]. Mas eles tinham começado a bombardear o Iraque e não achei apropriado estar com ele. Talvez tenha a ver com islamofobia."

Anos antes, Stevens havia sido expulso de Israel por supostamente financiar atividades terroristas. "Aquele problema foi definitivamente político. O governo israelense não queria uma estrela mundialmente famosa ajudando palestinos. Eu estava ajudando pessoas comuns, viúvas, crianças, serviços médicos. Acho que essa acusação foi uma forma de esconder o bom trabalho que estávamos realizando e chamar a atenção para outra coisa."

Sobre as opiniões fundamentalistas que o afastaram da música por duas décadas, Stevens conta como conseguiu se livrar delas. "Anos depois de ter parado, eu estudei a questão profundamente e percebi que não era verdade. O ser humano precisa de muitas coisas, e a música certamente satisfaz parte dessa nossa fome interna por beleza. A música é parte do universo de Deus. Voltei a escrever canções para mostras às pessoas que, no meu coração, ainda sou o mesmo. Não mudei meus ideais."

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