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Lucas Nóbile

Arnaldo Antunes e Vitor Araújo ecoam a Covid em disco contra a era TikTok

'Lágrimas no Mar' reflete sobre o confinamento com profundidade ao falar de solidão e fins de relacionamentos

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Lucas Nobile

Na era da ultrainformação, em que tudo parece exigir a efêmera duração de um story, de um meme ou de uma dancinha no TikTok, a arte que mais caiu nessa dinâmica pós-moderna foi a música.

Com a dominância dos singles, dos feats e dos EPs, produzir e lançar um disco hoje já é quase um ato contracorrente. É preciso ter assunto, em letra e música, para ir além da página dois. E isso Arnaldo Antunes e Vitor Araújo, que acabam de lançar um álbum juntos, têm de sobra.

"Lágrimas no Mar" é um disco que reflete seu tempo. Dentre algumas razões, por não ser um álbum festivo. E há beleza e introspecção nisso, não necessariamente tristeza. Afinal, num cenário de pandemia, quem não passou por instabilidades emocionais? Antunes e Araújo conseguem tratar disso com profundidade, mas sem deixar que o disco soe pesado.

Temas tão reais quanto familiares a todo ouvinte —isolamentos, distanciamentos, solidão, fins de relacionamentos, ruídos de comunicação— perpassam o álbum nas composições inéditas de Arnaldo Antunes —só ou com diferentes parceiros— e nas regravações de canções de autoria dele mesmo ou de outros autores.

Entre as criações dos outros compositores essa temática fica evidente. Tanto no clássico "Como Dois e Dois", de Caetano Veloso ("tudo em volta está deserto, tudo certo/ tudo certo como dois e dois são cinco"), quanto no haikai poético-sonoro "Fim de Festa", pintado por Itamar Assumpção em apenas quatro versos –"meu amor por você chegou ao fim/ é tudo que tenho a dizer/ também não precisa sair assim/ espere o dia amanhecer".

Nas inéditas, a mesma marca que faz de Antunes um grande poeta –genial por ser acessível. Acessível por ser genial. E faz isso ora descrevendo uma cena trivial em "Enquanto Passa Outro Verão" ("ou se olha tanta tela que não mira mais janela/ quando passo enquanto passa outro verão"), ora versando sobre o ciclo vital dos mamíferos —e existencial dos humanos— em "Umbigo" ("mamíferos têm um redemoinho/ lembrança do cordão umbilical/ é como o ninho de um passarinho/ trançado por seus pais em espiral"). Ambas foram feitas em parceria com Cézar Mendes.

O disco ganha leveza com a participação de Marcia Xavier, que divide o canto com Antunes em "Como Dois e Dois" e em "Umbigo", e de Pedro Baby, que toca violão de náilon e guitarra em "Lágrimas no Mar".

Ainda que mais da metade do álbum não seja composta por canções inéditas, no encontro entre o poeta paulistano e o pianista pernambucano tudo soa novo de novo. E aqui não se pode deixar de falar sobre a atuação de Vitor Araújo.

Mais do que um acompanhador, Araújo é capaz de apresentar um piano com a exuberância de um virtuoso, um piano com a economia de um arranjador, um piano com a técnica limpa de um concertista, um piano de experimentador que explora recursos e sonoridades do instrumento que vão muito além das convencionais.

Tudo isso no mesmo disco; às vezes, numa mesma música. Mais do que se limitar a levadas e conduções tradicionais, Araújo vai deslindando faixa a faixa mudanças de dinâmica e brincadeiras inventivas com as divisões. Constrói climas e atmosferas sonoras que parecem pequenas trilhas sonoras cinematográficas. Tem o entendimento para entregar nada a mais, nada a menos do que aquilo que a composição pede.

Maturidade e excelência que contribuem para dar novos sentidos a canções consagradas de Antunes. Isso está, por exemplo, no lirismo da introdução arpejada de "Longe" (de Arnaldo Antunes, Betão Aguiar e Marcelo Jeneci); na densidade dramática de "Manhãs de Love" —cujos caminhos melódicos e encadeamentos harmônicos têm a impressão digital inconfundível de Erasmo Carlos; nos ares eletrônicos de um Kraftwerk em São Paulo para acompanhar o frenesi mental atormentado do personagem protagonista de "Fora de Si", outro clássico do cancioneiro do artista.

Em faixas como esta última, ao ouvir as linhas de baixo e intervenções percussivas, temos a impressão de que há mais instrumentistas tocando na gravação. Mas, não, é apenas um piano.

Num encontro que resulta em algo diferente do que eles mesmos já haviam feito anteriormente em suas trajetórias, Arnaldo Antunes e Vitor Araújo jogam em "Lágrimas no Mar" no mesmo time do poeta Manoel de Barros. Não gostam nem de palavra nem de som acostumado.

Lágrimas no Mar

  • Quando Disponível
  • Onde Plataformas digitais
  • Autor Arnaldo Antunes e Vitor Araújo
  • Gravadora Rosa Celeste
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