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Negros pioneiros apagados pelo racismo têm história recuperada

Coletânea destaca nomes como Dona Ivone Lara, que atuaram nas ciências médicas e na instalação de políticas públicas

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Que Dona Ivone Lara, a cantora e compositora negra carioca, "a Dama do Samba", foi também assistente social e enfermeira atuante na reforma psiquiátrica brasileira poucos sabem.

Que o médico negro baiano Juliano Moreira, nascido em 1872, combateu com argumentos epistêmicos, a partir de suas observações e pesquisas, a teoria do racismo científico de sua época, e que é considerado o fundador da psiquiatria brasileira, só se conhece talvez nos meios médicos.

Que Maria Lúcia da Silva, psicóloga e psicanalista negra, uma das fundadoras do Instituto Amma Psique e Negritude, onde atua até hoje, em São Paulo, é uma das pioneiras da investigação dos efeitos psicossociais do racismo na subjetividade de indivíduos negros, pouca gente dirá que já ouviu falar.

Contribuir para tirar da invisibilidade a participação ativa e a produção intelectual de profissionais negros importantes na construção de políticas públicas de saúde para populações vulneráveis, em diversas áreas das ciências médicas e humanas no país, é o objetivo da publicação "Racismo, Subjetividade e Saúde Mental: Pioneirismo Negro".

A coletânea, organizada pelos psicólogos Emiliano David e Jeane Tavares, pela assistente social Raquel Passos e pelo sociólogo Deivison Faustino, inclui artigos e entrevistas com enfoque na atuação daqueles profissionais na área da saúde mental e das reformas psiquiátrica e sanitarista brasileiras.

Nos nove capítulos do livro, autores de gerações mais novas, a maioria negros, inspirados na luta e nas lições daqueles mais velhos (médicos, enfermeiras, assistentes sociais, psicólogas, psicanalistas, sociólogas etc.), por eles selecionados, mostram a colaboração do pensamento e da militância destes últimos para a criação de políticas públicas de saúde coletiva e de combate aos efeitos do racismo na saúde mental da população negra.

Além das três personalidades já citadas aqui, destacam-se nos artigos e entrevistas as trajetórias de Diva Moreira, Lélia Gonzalez, Neusa Santos Souza, Sônia Barros e Virgínia Bicudo. Notável aí o recorte de gênero: todos os nomes, com exceção de Juliano Moreira, são de mulheres negras.

A publicação problematiza o que chama de "silenciamento" em torno da produção intelectual e da prática profissional de personalidades que (a exemplo de Juliano Moreira) jamais ganharam reconhecimento à altura do que tiveram médicos brancos como Oswaldo Cruz ou Carlos Chagas, contemporâneos de Moreira.

Assim é que o artigo "Amefricana: Racismo, Sexismo e Subjetividade em Lélia Gonzalez" atribui ao racismo o reconhecimento tardio do trabalho da historiadora e filósofa Lélia Gonzalez (1935-1994), que atuou na vanguarda da "descolonização da psicanálise" e no debate sobre a relação entre gênero e raça: "Embora pioneira, sua produção ficou durante várias décadas restrita a seus alunos e ao movimento social negro".

Assim, também, o artigo que aprofunda o percurso profissional da socióloga, psicóloga e psicanalista Virgínia Bicudo (1910-2003) discute o "apagamento histórico" de estudos sobre relações sociais no Brasil que Bicudo realizou ainda nas décadas de 1940 e 1950, mas que só foram publicados postumamente, em 2010.

No oitavo capítulo, uma entrevista com Sônia Barros, enfermeira e professora aposentada da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, joga luz no processo de ensino-aprendizagem adotado por ela como apoio aos trabalhadores do sistema de saúde mental público, tendo como objeto de estudo a reabilitação psicossocial e desinstitucionalização de usuários de serviços de saúde mental do Sistema Único de Saúde (SUS).

O texto "Entre os Sambas, os Bambas e a Loucura: o Discreto Protagonismo de Dona Ivone Lara na Saúde Mental", que aborda a trajetória de 37 anos de Lara (Yvonne Lara da Costa, 1922-2018) como enfermeira e assistente social em uma instituição psiquiátrica do Rio de Janeiro, traz detalhes do trabalho dela ao lado da médica Nise da Silveira (1905-1999), a precursora da humanização da psiquiatria e da luta antimanicomial no Brasil.

Valendo-se de sua experiência na música, Ivone Lara coordenava oficinas musicais como terapia para os internos da instituição, com autorização de Silveira, além de praticar com eles seus conhecimentos em terapia ocupacional adquiridos em curso ainda informal ministrado pela médica na época.

Publicação tão significativa quanto esta é prova da resistência e da renovação do movimento negro brasileiro. É iniciativa que faz o sonho, a luta e o nome de tantos profissionais negros importantes para o país deixarem a penumbra que o racismo insiste em fazer cair sobre eles.

Racismo, Subjetividade e Saúde Mental: Pioneirismo Negro

  • Preço R$ 22 (164 págs.)
  • Editora Hucitec
  • Organização Emiliano David, Raquel Passos, Deivison Faustino e Jeane Tavares
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