Guerra da Ucrânia encurrala grifes em Paris em meio a boicote a milionários russos

Na Semana de Moda, marcas ora mantiveram silêncio insensível, ora foram atacadas pela estetização dos protestos

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Paris

De início, o choque. Depois, vieram as contas, e, no fim de tudo, o sentimento que misturou a inação ante a barbárie e as dúvidas sobre até onde ir para responder a ela. Como nunca antes na história recente, a moda teve de se virar para tomar partido sobre um conflito armado na vizinhança.

Não que outros não fossem tão mortíferos quanto este desenrolado na Ucrânia, que coincidiu com o ápice da esbórnia fashionista neste período de desfiles invernais. Porém, o fato de envolver um país agressor importante tanto para a sobrevivência de sua máquina quanto para sua cadeia de suprimentos fez executivos, estilistas e a roda da costura se perder num labirinto.

Modelos desfilam peças da coleção outono-inverno 2022-2023 da Hermès durante a Semana de Moda de Paris - Geoffroy Van der Hasselta/AFP

"Ninguém sabe exatamente o que fazer. É um momento de choque, o inesperado que ninguém contava poder ser real nos dias de hoje", disse a estilista Nadège Vanhee-Cybulski no primeiro dia de temporada, dias antes da marca para a qual dirige o estilo feminino, a Hermès, puxar a saída em peso do luxo internacional dos corredores chiques da Rússia.

Isso não sem antes toda a indústria tentar contornar o problema. Doações aos refugiados, mensagens de paz no Instagram e uma tentativa de mostrar empatia sobre o estado das coisas era a resposta pouco efetiva disponível.

"É uma situação muito triste que estamos acompanhando para entender quais atitudes tomar", afirmou o presidente da Dior, Pietro Beccari, após o desfile da grife na terça-feira passada.

O xadrez já se desenrolava nos bastidores. Muito antes de o presidente da federação de moda local, Sidney Toledano, tomar a decisão de vetar a apresentação digital do estilista russo Valentin Yudashkin por suas posições alinhadas a Vladimir Putin —ele desenhou roupas para o Exército russo—, os clientes milionários da Rússia já batiam em retirada.

O presidente da Rússia Vladimir Putin e o estilista Valentin Yudashkin
O presidente da Rússia Vladimir Putin e o estilista Valentin Yudashkin - Kremlin - 29.out.2013/Creative Commons

Um dos motoristas de uma empresa especializada em aluguel de carros luxuosos que transporta os super-ricos entre lojas e desfiles disse a este repórter que uma família inteira de russos havia cancelado 44 reservas de automóveis Mercedes-Benz no meio da temporada. Eles viriam de um outro país da Europa, mas, com o acirramento dos ânimos, teriam cancelado as reservas.

Cinco horas desse serviço custam, no mínimo, € 450 euros por carro. Ao todo, ele conta, o prejuízo foi de quase € 20 mil para a companhia, algo em torno de R$ 120 mil diários pelo vaivém do grupo que, é possível especular, temia retaliações.

Os milionários por aqui chegam a gastar sete dígitos nas lojas da avenida Montaigne, uma das principais veias de consumo dos endinheirados de passagem, e têm acesso liberado às lojas independentemente do horário de compra.

Só por aí se tem uma ideia de que, pelo lado financeiro, o tombo em época de desfiles, cujas duas edições anuais movimentam cerca de € 40 bilhões só em Paris, segundo os últimos dados da câmara de comércio local, não são de cifras desprezíveis.

Passado o boicote ao comércio internacional, a questão recorrente ainda era como responder ao conflito. Cancelar o desfile, como ninguém fez? Promover protestos, como fez a Balenciaga? Levar mensagem de esperança, como fez Valentino com sua coleção toda em cor-de-rosa? Qualquer atitude, por mais legítima que parecesse, foi motivo de crítica.

Se, de um lado, quem se calou era acusado de insensível por uma parcela mais politizada da imprensa internacional, do outro, quem abria a boca era questionado sobre o uso midiático do conflito.

Mesmo Demna Gvasalia, ex-refugiado e vítima nos 1990 das investidas russas sobre sua terra natal, a Geórgia, foi posto na fogueira por quem viu uma suposta estetização exacerbada de seu desfile para a Balenciaga, no qual ele parecia reproduzir o périplo de quem foge de situações extremas.

A recepção sobre as formas de a moda responder ao estado das coisas varia conforme o interesse e a disposição das pessoas em ver o segmento como vetor de cultura, de motor para imprimir mensagens para além do aspecto puramente comercial que muitos ainda insistem em imputar a toda a indústria.

"Muitos ainda enxergam a moda como um lugar que trata de privilégios", resumiu a estilista Maria Grazia Chiuri, da Christian Dior. "Tudo parece tão irreal e tão sem sentido que procuro fazer apenas o possível para manter todos os empregos que também dependem de mim", disse.

Do lado de fora da bolha fashionista, porém, as pessoas esperam muito mais. Entre os presentes na manifestação contra a guerra, no último sábado, a faxineira ucraniana Angela Bushman, de 51 anos, pedia em sua língua, ao lado de um grupo formado por outros 23 conterrâneos aglomerados em meio à multidão, atitudes mais enérgicas por parte dos líderes ocidentais.

Há quase três décadas vivendo em Paris, ela se emociona ao contar que parte de sua família ainda está na capital ucraniana Kiev e, entre os homens da outra metade que emigrou com ela, três decidiram voltar ao país para lutar ao lado dos amigos contra a invasão.

"Falo isso com muita tristeza, mas a verdade é que estamos sozinhos nessa guerra. Se outros países não entrarem conosco, não haverá mais Ucrânia para eu voltar", diz, enquanto um grupo de jovens franceses passava com um cartaz no qual se lia, em inglês, "Otan, faça alguma coisa". No fim das contas, e parece cada vez mais evidente, ninguém sabe mesmo o que fazer.

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