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Entenda por que tanta gente larga tudo e foge para o mato na literatura da pandemia

Rosa Montero, Federico Falco e Marcela Dantés criam personagens que abandonam a cidade para se encontrar

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pintura de mulher de costas debruçada sobre parapeito vermelho

'Varanda', pintura de Marina Quintanilha na capa do livro 'A Boa Sorte', de Rosa Montero, da editora Todavia Marina Quintanilha/Divulgação

São Paulo

"Um pouco de vento fresco. O sol que pinica um pouco. O canto dos pássaros. A quietude. Tenho de deixar que o campo me preencha e me ensine", escreve o protagonista de "Planícies", romance de Federico Falco. "Era um espaço onde podia encontrar a mim mesmo. Era um espaço onde podia me ler."

É um livro introspectivo e delicado de um autor argentino, mas que encontra rima numa obra que resvala no thriller e foi publicada quase ao mesmo tempo do outro lado do mundo.

"Ser outro é um alívio. Escapar da própria vida", pensa o homem aflito que conduz "A Boa Sorte", da espanhola Rosa Montero. "Destruir o feito. O malfeito. Se pudesse ao menos formatar sua memória e recomeçar do zero."

De maneiras diferentes, os dois personagens tomam a decisão radical de sair de casa, deixar sua cidade e se afastar das pessoas que conhecem, numa busca meio angustiada, meio serena, de encontrar quem realmente são.

Os livros se alinham a uma sensibilidade particular dos anos de pandemia, que forçaram as pessoas a se confrontarem consigo mesmas —querendo elas ou não. Nisso, muita gente repensou sua rotina e deu viradas bruscas de emprego, endereço ou relacionamento.

Federico, que carrega o mesmo nome de seu autor, reage ao término inexplicável de uma longa relação se mudando para uma casa isolada no meio dos pampas. Um trabalho silencioso de plantio acompanha o processo doloroso da reconstrução de si mesmo.

Já Pablo, de "A Boa Sorte", é mais abrupto. Durante uma viagem de trem pela Espanha, o arquiteto avista um endereço caindo aos pedaços e se instala, de supetão, no meio do nada. Os leitores só entenderão mais tarde o que provocou a decisão, mas quem nunca sonhou em reiniciar a vida por completo durante uma crise que atire a primeira pedra.

"A pandemia foi um grande momento para se sintonizar com seus verdadeiros desejos", diz Falco, em entrevista por videoconferência. "Alguns estão agora aprendendo a retomar a cidade, mas para outros foi o empurrão que faltava para concretizar planos de sair de vez."

O escritor conta que o romance estava pronto antes do coronavírus —na Argentina, foi publicado em 2020, e chega agora como um dos lançamentos da nova coleção de literatura contemporânea da Autêntica. Mas, nesse meio tempo, "a vida que conhecíamos mudou", o que catapultou sua recepção em termos de público e prêmios.

"Eu sentia que quase não ia ter leitores", comenta ele, quase envergonhado. "Mas o mundo em que o romance foi escrito e aquele no qual foi publicado são bastante diferentes."

Rosa Montero também diz que o impulso que leva seu personagem a sumir no mundo guarda relações com a pandemia "por alguma estranha razão". A espanhola estourou por aqui com "A Ridícula Ideia de Nunca Mais te Ver", um mergulho ensaístico no oceano do luto, e este "A Boa Sorte" oferece outro tipo de reflexão sobre o que fazer quando a vida se desintegra.

"Pablo sofre uma catástrofe que o desbarata por completo. Quando sai do trem, ele sai de sua vida. É uma metáfora básica e óbvia da existência, o trem, que ele fica vendo passar sem poder participar. Então decide descer, se reinventar e começar do zero, que é um pouco o que nos aconteceu a todos."

Ao final do livro, perguntam a Pablo se ele sabe por que afinal desceu do trem. "E ele diz que não, que foi um reflexo, como alguém que tira a mão do fogo para não se queimar", comenta a escritora de 71 anos, de franja morena que cobre as sobrancelhas e braços cheios de tatuagens.

Esse processo de se cortar as raízes é traumático, o que serve também para Matilde, que a escritora mineira Marcela Dantés posiciona no centro de outro romance da mesma leva de estreia do selo Autêntica Contemporânea.

"João Maria Matilde" é a história de uma mulher que descobre que o pai, um português desconhecido, deixou para ela uma herança ao morrer. Matilde então deixa a mãe doente e o namorado e viaja a uma cidadezinha minúscula, inspirada na vila de Óbidos, para entender quem era aquele homem —e, por consequência, quem é ela.

Dantés, finalista do prêmio Jabuti por seu livro anterior, "Nem Sinal de Asas", criou a trama numa residência literária em Portugal há cinco anos, mas sentiu a necessidade de ampla reescrita depois de passar pela maternidade e pela quarentena.

"Fiquei impressionada com o tanto de mudanças grandes que aconteceram na vida das pessoas. Algo que vem de um lugar desconhecido, mas forçou todos a saírem do modo automático e descobrirem coisas que nem sempre são fáceis de lidar."

A reclusa Matilde passa por uma turbulência drástica, mas seu deslocamento geográfico permite um autoconhecimento que dificilmente ocorreria de outra forma, segundo sua autora.

É notável que todos os personagens alcancem suas epifanias em lugares ermos, habitados por quase ninguém. O repórter pergunta a Federico Falco, de "Planícies", se há algo que só conseguimos aprender sobre nós mesmos no meio do campo.

O escritor diz que isso depende da biografia de cada um. Nesta narrativa específica, os pampas serviram para reacender memórias de infância. "Mas há outras infâncias. Gente que se criou em cidades, no litoral, na selva amazônica. Cada um encontrará sua paisagem."

Uma vez decidido o destino para onde fugir, os autores confiam no poder da literatura —na verdade, no simples ato de escrever— como ferramenta de reconstrução. "Contar uma história transforma quem a conta", escreve Federico. "E às vezes a ficção é a única maneira de pensar o verdadeiro."

No título do livro de Montero, a boa sorte é conseguir olhar o mundo de outro modo —mas sobretudo conseguir contar sua vida a si mesmo de outro modo.

"Porque os seres humanos somos narração", defende a espanhola, fervorosa. "Somos acima de tudo palavras em busca de sentido. O que nos afeta não é o que nos acontece, mas o que contamos a nós mesmos sobre o que nos acontece. Se você muda o relato da sua vida, muda literalmente a sua vida."

Planícies

  • Preço R$ 57,90 (232 págs.); R$ 40,90 (ebook)
  • Autoria Federico Falco
  • Editora Autêntica Contemporânea
  • Tradução Sérgio Karam

A Boa Sorte

  • Preço R$ 69,90 (256 págs.); R$ 44,90 (ebook)
  • Autoria Rosa Montero
  • Editora Todavia
  • Tradução Fabio Weintraub

João Maria Matilde

  • Preço R$ 54,90 (160 págs.); R$ 38,90 (ebook)
  • Autoria Marcela Dantés
  • Editora Autêntica Contemporânea
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