Descrição de chapéu
Cinema LGBTQIA+

'Fire Island' vai além dos boys sarados e explora agonias dos homens gays

Sem fazer da representatividade mera tendência de mercado, filme adapta Jane Austen e destaca neuroses dos protagonistas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

O rapaz gay e asiático tira a camiseta para exibir o corpo musculoso. Outro reage desaprovando os ideais de beleza "tóxicos". "Tanto faz", responde o primeiro. "Sou invisível para a maioria dessas pessoas." O grupo de homens gays está numa balsa a caminho de Fire Island, ilha em Nova York que é um icônico ponto turístico da comunidade.

"Raça, masculinidade e tanquinhos são apenas algumas das métricas que usamos para nos separar uns dos outros em classes altas e baixas", narra em off o primeiro rapaz, Noah, vivido por Joel Kim Booster.
A cena é de "Fire Island: Orgulho & Sedução", comédia romântica do Star+. Dirigida por Andrew Ahn e escrita por Booster, ela adapta "Orgulho e Preconceito", o romance de costumes de Jane Austen —e é um dos mais recentes lançamentos com o selo de "representatividade". O seriado "Heartstopper", da Netflix, e o filme "Mais que Amigos, Friends" são outros exemplos.

Joel Kim Booster em cena do filme "Fire Island: Orgulho e Sedução", de Andrew Ahn
Joel Kim Booster em cena do filme 'Fire Island: Orgulho e Sedução', de Andrew Ahn - Divulgação

A palavra, hoje, pode soar desgastada. Mas em "Fire Island", a representatividade vai além da tendência mercadológica —ela é central à história.

Noah e seus amigos fazem a viagem anual à ilha para curtir uma semana de férias com festas e sexo casual, mas desta vez as aflições dos personagens complicam tudo.

Inspirado em Elizabeth Bennet, o protagonista tenta esconder inseguranças em relação ao amor transando e fugindo de vínculos emocionais. A amizade dele com Howie, vivido por Bowen Yang, é especial, já que, além de serem asiáticos, se conhecem há dez anos.

Howie é inspirado em Jane, a fiel irmã de Elizabeth. Se o amigo protege a todo custo o isolamento em que vive, Howie encara o seu com franqueza —ele tem os nervos à flor da pele por chegar aos 30 anos sem nunca ter namorado.

Essa dinâmica lembra o livro "Out of the Shadows: Reimagining Gay Men's Lives", ou fora das sombras, reimaginando as vidas de homens gays, do psicólogo Walt Odets. O livro é baseado em décadas atendendo gays como ele próprio.

O autor diz ter ouvido "mil vezes" dos pacientes "eu nunca me interesso por homens que se interessam por mim, e aqueles pelos quais eu me interesso nunca retribuem". Segundo Odets, se apresenta aí a homofobia internalizada.

O bloqueio, argumenta, está na percepção que aquele que procura amor tem de si mesmo, e não em quem os outros gays de fato são. Quando o primeiro demonstra interesse em outro, ele se torna um homossexual "desviante" aos olhos de seu objeto, e isso funciona de maneira bilateral.

Avanços nos direitos civis não são sinônimo de libertação da vergonha e da culpa no inconsciente, defende o autor. Pagar a fatura da estigmatização não é nossa responsabilidade, embora muitos tenham se convencido do oposto.

"Fire Island" dá relevo ao que Odets chama de "homem gay". Isso mesmo, não "homossexual", pois este é um termo que descreve apenas a superficial definição dos heterossexuais a nosso respeito —"homens que fazem sexo com homens". Odets prefere "homem gay" pois esta é uma maneira de englobar "uma vida interna de sentimentos".

A amizade dos protagonistas e suas neuroses refletem isso. Durante a viagem, Howie, que é gordo, é cauteloso ao tentar não se decepcionar mais uma vez com um crush —a carência e a insegurança numa ilha de boys sarados.

Noah herda de Elizabeth o hábito de ser um leitor voraz e opinado —e também uma pessoa presunçosa. Ele mal conhece o Darcy da vez e já se incomoda com o ar esnobe do boy rico, repelindo qualquer abertura à intimidade.

"Fire Island" se aprofunda na abordagem austeniana ao examinar divisões que acontecem em um grupo de "iguais" —este sendo outro fator que acentua as dores dos personagens, já permeadas por rejeições. Os rapazes já nem acreditam que um dia conseguirão comprar a casa própria e expressam amargura pelas dívidas estudantis que os permitiram ir à universidade. As férias na ilha são possíveis apenas porque a casa é emprestada a eles por uma boa alma.

A repulsa por si mesmo se manifesta em ações que refletem realidades preocupantes do meio gay, como a onda do "chemical sex" —sexo praticado sob efeito de drogas psicoativas— e a promiscuidade na forma vivida por Noah, em que ele nega a si mesmo a ânsia por ser amado.

A narração em off dá um quê de metalinguístico ao filme. "Fire Island" sabe que é uma comédia romântica feita para quem é público-alvo de produções do gênero. É como se uma missão estivesse sendo cumprida com reedições de fantasias e o exame das inseguranças da psique gay.

O que a câmera não mostra também é significativo. As figuras paterna e materna se manifestam em diálogos. O filme poderia ter invertido clichês ao pôr heterossexuais progressistas como coadjuvantes, os abordando como tipos excêntricos —ou até mesmo para satirizar o progressismo. São essas ausências que mostram as prioridades de "Fire Island".

Outro importante passo é no recorte de raça, uma das razões pelas quais ela tem sido elogiada. Arrisco dizer que, depois de "Banquete de Casamento", de 1993, um dos primeiros filmes de Ang Lee, só de poucos anos para cá voltamos a ver representações de gays asiáticos no cinema de alcance internacional.

Se tantos espectadores podem se voltar ao cinema para encontrar a subjetividade, por que o mesmo não poderia se aplicar a quem não é heterossexual ou cisgênero? Filmes como "Fire Island" podem nos ajudar a romper o isolamento.

Fire Island: Orgulho e Sedução

  • Onde Disponível no Star+
  • Classificação 18 anos
  • Elenco Joel Kim Booster, Bowen Yang e Margaret Cho
  • Produção EUA, 2022
  • Direção Andrew Ahn
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.