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'A Nova Utopia' evidencia em versos agudos cenas da decadência urbana

Volume do paulistano Régis Bonvicino executa crítica da poesia a partir de sua identificação com o discurso contemporâneo

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Luisa Destri

Doutora em literatura brasileira pela USP e coautora de "Eu e Não Outra - A Vida Intensa de Hilda Hilst"

São Paulo

Os poemas de "A Nova Utopia", de Régis Bonvicino, são uma rara conjugação de domínio técnico e leitura aguda do mundo. Quase sempre curtos e objetivos, têm como tema principal a cidade –trazendo, mais especificamente, cenas em torno da degradação da vida urbana.

O livro reúne composições inéditas e outras publicadas, como álbum sonoro e libreto em 2020, com o título "Deus Devolve o Revólver", e se destaca por características elogiadas pela crítica desde a estreia do autor como poeta, na década de 1970.

Um de seus principais fatos disparadores parece ser aquilo que um poema em prosa resume da seguinte maneira —"mendigos proliferam como cupins, de marquise em marquise, de praça em praça, de farol em farol". O leitor habituado a percorrer as ruas de qualquer grande cidade reconhece a afirmação como um dado evidente da realidade social. Segundo informações de janeiro desete ano, na cidade de São Paulo a população de moradores de rua cresceu 31% durante a pandemia de Covid-19.

Capa de "A nova utopia", de Régis Bonvicino
Detalhe da capa de 'A Nova Utopia', de Régis Bonvicino - Ed. Quatro Cantos/Divulgação

Ocupando calçadas estreitas, recostados a vitrines e canteiros, remexendo lixeiras ou delirando, eles são os protagonistas das composições.

Apesar disso, em uma característica estilística sutil mas contundente, essas figuras poucas vezes surgem como sujeitos gramaticais das construções. Indicados em orações nominais ("deitada no chão/ rente à mureta do parque/ fios de cabelo branco escapam da tiara") ou encobertos por estruturas com sujeito oculto ("dorme deitado no banco da praça/ sob a noite fria"), se erguem em meio à sujeira da rua, espreitam através de barracas, dormem com o rosto exposto ao sol, tapado pela mão, enfiado em um gorro. Impossibilitados assim de se associar à categoria de sujeitos plenos, espelham sintaticamente sua condição.

Retrato do escritor Régis Bonvicino, autor de álbum com poesias inéditas declamadas
Retrato do escritor Régis Bonvicino, autor de álbum com poesias inéditas declamadas - Eduardo Anizelli/Folhapress

A essas figuras se somam ainda imigrantes e refugiados pobres. Dando protagonismo a eles em poemas que recusam qualquer nota subjetiva, o poeta sinaliza a confiança em seu instrumento para fazer ver os horrores de nosso tempo.

A técnica não é nova em poesia, lembrando descrições como as de Murilo Mendes e Oswald de Andrade. Mas, menos onírico que o primeiro e mais imparcial que o segundo, Régis Bonvicino seleciona cenas entre as mais atuais.

Valas comuns abertas pela Covid, fome, violência, "blá-blá-blá com mortes" e desmando político –entre outras invisibilidades de nosso tempo, como os "mendigos" e as "mendigas"– cabem de forma justa no verso, invertendo uma de suas próprias proposições —"o que se apaga no poema/ dá de cara com o mundo".

A novidade talvez esteja no fato de que, para enxergar o que a vista vê, o poeta não precisa de nenhum dom especial –como por vezes fazem pensar os poemas modernistas, sobretudo os de Murilo Mendes.

Se tem tempo para contemplar, é porque o sujeito está parado no trânsito; a utopia com a qual se identifica e que é definida de inúmeras maneiras ao longo do livro "é um discurso estritamente atrelado à realidade", mas, por outro lado, também se trata de acreditar que a poesia "infesta páginas, telas, mídias".

Embora elimine qualquer possibilidade de idealização do ofício poético, o conjunto não deixa de ser, no entanto, uma afirmação da força da poesia. Isso se nota no retrato do presente, que dela depende para se desenhar com essa contundência, mas também na relação que se estabelece com a própria cultura.

A poesia medieval, Ezra Pound, Pasolini –buscadas em tempos mais ou menos próximos, as referências são também fundamentais para a possibilidade de ver o mundo. Surgem em descrições de cenas na Espanha, na França, na Itália e revelam que, quando se trata de miséria urbana, a Europa talvez não esteja mais tão à frente do Brasil.

Sem haver propriamente uma arquitetura no livro, o conjunto parece pedir, assim, uma tentativa de interpretação mais totalizante, que talvez passe por uma ideia sugerida em "Mare Nostrum". Tradicionalmente metáfora da comunhão humana, o mar se torna, aqui, metonímia dos problemas políticos da Europa contemporânea, carregando contrabandos, corpos, criminosos.

Não se pode concluir, com isso, que os poemas se contraponham ao humanismo universalizador, se pondo em defesa das identidades particulares. Nenhum significado parece estável ou definitivo —as composições se erguem contra a injustiça com a mesma intensidade com que afirmam a sua identificação com o discurso contemporâneo.

"A nova utopia é, ao mesmo tempo, um duty free e um detox financeiro." Demandam, assim, na sua proposta de atualidade radical, uma consideração mais demorada –como a catadora estrangeira que permanece como "um enigma verbal/ na calçada, perto da guia".

A Nova Utopia

  • Preço R$ 48 (160 págs.)
  • Autoria Régis Bonvicino
  • Editora Quatro Cantos
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