Museu criado por Nise da Silveira reabre com anexo em antigo hospital infantil

Espaço comemora seus 70 anos com 'Ocupação Nise da Silveira' e perspectiva de restaurar área, com hospício inativado

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Rio de Janeiro

Nise da Silveira, já idosa, disse numa entrevista que nunca haviam feito a pergunta que ela desejava ouvir. "Onde estão estes homens e estas mulheres que fizeram esses trabalhos que nós estamos agora admirando?"

A alagoana que mudou os rumos da psiquiatria no Brasil se referia às obras de arte feitas pelos clientes —como ela chamava os que estavam em hospitais psiquiátricos— nos célebres ateliês de pintura que montou. Eram pinturas exibidas em mostras vistas por gente do calibre do crítico Mário Pedrosa.

Retrato de Nise da Silveira
Retrato de Nise da Silveira apresentado em mostra do Itaú Cultural sobre a psiquiatra - Arquivo Nise da Silveira_Autor desconhecido/Divulgação

Os trabalhos artísticos feitos pelos que viviam com transtornos mentais ganharam um espaço próprio no Rio de Janeiro, o Museu de Imagens do Inconsciente. A provocação de Silveira, no entanto, permanece atual, com um público que dificilmente encontra os criadores daquelas criaturas. Isso até a reabertura da instituição de arte neste mês, em comemoração dos 70 anos do espaço.

A questão não era nem sequer necessária, os artistas estavam ali. O grupo de teatro Os Inumeráveis, Arlindo Oliveira, do ateliê do Museu Bispo do Rosário, e a roda de samba com o bloco de Carnaval Loucura Suburbana se apresentaram no evento que marcou a volta das atividades do museu depois da pandemia e a abertura de um anexo que já foi um hospital infantil e passou quatro anos em reformas.

"Este é um período em que a saúde mental está em evidência devido à pandemia", diz Eurípedes Junior, vice-presidente da sociedade de amigos do museu. "E esse museu tem 70 anos de experiência de uma abordagem mais humanista, criativa, respeitosa e inclusiva, na contramão do que a psiquiatria tradicional pregou. Essa expertise é o que a gente precisa passar para a sociedade em geral."

Além do acervo de obras de arte que estão na sede do Museu de Imagens do Inconsciente, o novo prédio leva ao Rio a "Ocupação Nise da Silveira", exposição do Itaú Cultural que resgata a vida da psiquiatra com documentos, fotografias, vídeos, correspondências e depoimentos e que já passou por São Paulo, há cinco anos.

Como o acervo mostra, Silveira nunca fez pouca coisa. Ela foi a única mulher a se formar na turma de 1926 da Faculdade de Medicina da Bahia, desafiou a ditadura militar, travou um diálogo com Carl Gustav Jung e lutou contra terapias de choque nos anos 1940. Tudo isso com propostas, antes de tudo, culturais —e é essa perspectiva que os envolvidos nessa expansão do museu querem manter.

O transtorno mental não é uma exceção, é uma experiência humana também. Não é só uma doença, é um estado que uma pessoa atravessa. E essa é a nossa grande contribuição para a sociedade, mostrar a criatividade dessas pessoas e do trabalho da doutora Nise", afirma Junior. "As transformações nessa área são feitas através de ações culturais."

A restauração do anexo foi feita pelo Itaú Cultural, que também adaptou a expografia da mostra para o novo espaço —com paredes de elementos vazados, em conversa com o que está fora do prédio e ressoando o que pretendeu a reforma psiquiátrica brasileira. A área revitalizada, fechada há cinco anos, foi batizada de Espaço Almir Mavignier, o artista que criou os ateliês terapêuticos com Silveira, e tem mais de mil metros quadrados.

Christina Penna, secretária-geral da sociedade de amigos do museu, lembra que o antigo hospital de psiquiatria infantil já teve outros usos no complexo do Engenho de Dentro, na zona norte da cidade.

O prédio já foi sede do Espaço Aberto ao Tempo, projeto comandado pelo terapeuta Lula Wanderley que resgatava práticas artísticas como a de Lygia Clark para lidar com transtornos mentais. Há dois anos, o EAT se tornou um Caps, ou Centro de Atenção Psicossocial, ainda dentro do Instituto Municipal Nise da Silveira.

Todo o complexo —com o Caps, a sede do museu, o novo prédio, e a recente inauguração do bosque Dona Ivone Lara— é palco há tempos de reivindicações sociais. Um coletivo de profissionais ligados ao patrimônio e à museologia já apresentou anos trás um projeto à prefeitura carioca para transformar esse espaço do antigo hospício num parque público.

Segundo o vice-presidente da sociedade de amigos, o Engenho de Dentro também é uma região carente de espaços de lazer. "Então desenvolvemos esse projeto de expansão não só para ter um aumento da própria sede, mas para que o espaço se torne um território simbólico. A gente quer alcançar a comunidade do entorno."

A perspectiva de expansão de outra parte do prédio futuramente também é parte de um amadurecimento de como o público vê a produção de clientes. Não que esse desenvolvimento tenha sido sempre linear nos últimos 70 anos. Como o próprio terapeuta Lula Wanderley disse em entrevista no começo deste ano, uma burocracia exacerbada no serviço público e um clima mais fechado a experimentações na psiquiatria impactaram seu trabalho nos últimos anos.

Ainda assim, o chão que Nise da Silveira germinou vai continuar a dar fruto, diz Eurípedes Junior. "E disso não tenho dúvida."

A repórter viajou a convite do Itaú Cultural

Ocupação Nise da Silveira, no Museu de Imagens do Inconsciente

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