Os Racionais MC's desceram as escadas vindos da projeção de um metrô de São Paulo para um momento histórico —o primeiro show do maior grupo de rap do Brasil no Rock in Rio, o maior festival de música do país. Servia como aviso da ligação umbilical entre a arte do quarteto e a periferia da maior metrópole nacional.
Depois do DJ KL Jay dar o clima, os MCs Mano Brown, Ice Blue e Edi Rock passearam pela discografia dos Racionais --de "Eu Sou 157", faixa de 2002, a "Preto Zica", de 2014, passando pela clássica "Capítulo 4, Versículo 3", de 1997. O grupo emendou faixas de maneira veloz, cortando versos em relação às originais para dar fluência à apresentação.
Intrinsecamente político, o show teve "Mil Faces de um Homem Leal", homenagem ao guerrilheiro comunista Carlos Marighella, que surgiu ao fundo no telão. "Negro Drama", um dos hits do grupo, foi uma das performances mais emocionantes, com o público berrando os versos de Edi Rock e Mano Brown.
Enquanto a música era cantada, nomes de pessoas negras assassinadas surgiam no telão –entre eles, Marielle Franco, João Pedro, Moa do Katendê e Moïse Kabagambe. Este último, aliás, um imigrante congolês, foi morto após ser espancado no quiosque Tropicália, bem próximo ao Parque Olímpico, onde acontece o Rock in Rio.
Ao fim da performance, o público puxou um sonoro xingamento ao presidente Jair Bolsonaro, do Partido Liberal, ao qual os músicos não reagiram.
Depois da emotiva "A Vida É um Desafio", os Racionais puxaram "Vida Loka pt 1", provavelmente o maior sucesso do grupo. A performance foi recebida com estrondo pela plateia, quando a chuva começou a apertar.
O show do Racionais, no palco Sunset, aliás, foi o primeiro que aconteceu debaixo de chuva –de certa forma, dando mais ineditismo ainda ao momento. Ice Blue chegou a escorregar enquanto dançava no palco e, depois, brincou com a situação.
Mas a água não afastou o público, que testemunhou um show dedicado às músicas mais famosas dos Racionais, algo que nem sempre acontece na atual fase do grupo.
São as músicas lançadas entre o fim dos anos 1990 e começo da década seguinte, quando os Racionais fincaram o nome na história da música nacional ao retratar o estilo de vida, os desejos e medos de quem vive as consequências da desigualdade social nas periferias do Brasil.
Em "Da Ponte pra Cá", KL Jay tocou o sample da faixa "Onda", de Cassiano, quando os Racionais recordaram o cantor, citado na letra de "Vida Loka pt. 2" e morto após anos no esquecimento no ano passado. Em "Jesus Chorou", na parte da letra que conversa com a própria consciência, Mano Brown pegou um celular, como se estivesse em uma ligação de vídeo consigo mesmo.
Na faixa, o rapper coloca em dúvida a validade de sua batalha por justiça racial e social, citando gente que "brigava por justiça e paz", e "levou tiro" –Malcolm X, Gandhi, John Lennon, Marvin Gaye, Che Guevara, Tupac, Bob Marley e Martin Luther King. O momento remeteu ao começo do show, quando o telão lembrou mortes com provável motivação política, como as de Marielle e Moa do Katendê.
Ainda houve espaço para "Eu Compro", do álbum de 2014 "Cores e Valores", incursão do grupo pelo trap e temáticas de ostentação, e "That's My Way", música solo de Edi Rock que já foi incorporada ao repertório dos Racionais. O encerramento teve ares épicos, com "Vida Loka pt. 2" e "Quanto Vale o Show?".
Na primeira delas, ambientada em um réveillon, o público pulou e cantou como em poucos momentos no Rock in Rio, jogando champanhe para o ar, como pede a letra. Foi um momento de celebração do hip-hop, que dominou a programação do palco Sunset neste sábado, através de seus maiores representantes no país.
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