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'Sátántangó' narra uma Hungria comunista com trama densa e distópica

Estreia de László Krasznahorkai na literatura possui história habilmente construída, marcada por melancolia e sarcasmo

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Sátántangó

  • Preço R$ 89,90 (232 págs); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria László Krasznahorkai
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Paulo Schiller

Não estranhe, leitora, se a cena de abertura de "Sátántangó" a remeter a Kafka. O personagem que acorda na cama estreita de um cômodo diminuto, no que parece ser o limiar entre sonho e realidade, ouvindo um sino que não existe, lembra muito o Gregor Samsa de "A Metamorfose".

E László Krasznahorkai é, de fato, um admirador assumido do escritor tcheco, cujas palavras (mais precisamente um trecho de "O Castelo") toma emprestadas para o epígrafo de seu romance.

Contudo, não demora muito para que fique clara uma diferença essencial entre os dois autores. Futaki, primeiro personagem do romance do húngaro, não está sozinho. Criado na Hungria comunista, de onde só saiu pela primeira vez em 1987, aos 33 anos, Krasznahorkai é fruto de um sistema político no qual o coletivo é um elemento inescapável da realidade.

Cena do filme "Satántangó" (1994), de Béla Tárr
Cena do filme 'Satántangó', de 1994, de Béla Tárr - Divulgação

Kafka se consagrou com solos de protagonistas em jornadas trágicas de transformação individual, Krasznahorkai é um maestro de orquestra, que gerencia personagens múltiplos que se atiçam, se entrelaçam e se imprimem uns nos outros numa espécie de dança sinfônica. Se Sartre dizia que o inferno são os outros, para o autor húngaro o inferno somos todos nós.

"Sátántangó" foi o romance de estreia que lançou o escritor para o centro da vida literária húngara. Mas levaria anos para que a obra fosse conhecida pelo mundo.

Primeiramente pelas mãos do cineasta Béla Tarr, seu amigo e conterrâneo, que adaptou o livro em 1994 num verdadeiro épico em preto e branco de sete horas e meia de duração —que é, sem dúvidas, um dos maiores filmes do cinema contemporâneo. Finalmente traduzido para o inglês há dez anos, foi laureado com o prestigioso Man Booker Prize em 2015.

Não é fácil descrever "Sátántangó". Com pinceladas grossas, podemos dizer que se trata de uma narrativa de múltiplos personagens tendo como pano de fundo um assentamento abandonado numa Hungria comunista distópica e a chegada do mítico Irimias, um homem tido como morto, cujo retorno ao vilarejo é cercado de expectativa e anseios. Seria ele um profeta, um agente secreto, o próprio satã?

O poder de manipulação de uma figura autoritária (ou pretensamente autoritária) sobre uma população fragilizada é um tema recorrente na obra de Krasznahorkai, que aparece, inclusive, em seu livro seguinte, o excelente "A Melancolia da Resistência", de 1989, também adaptado ao cinema por Bela Tárr.

Aliás, foram seis as colaborações cinematográficas entre os dois húngaros, numa parceria rara e extremamente bem-sucedida que compreende quase toda a filmografia de Tárr.

Talvez a melhor forma de descrever "Sátántangó" seja pela forma. Nas palavras de George Szirtes, tradutor anglo-saxão da obra de Krasznahorkai, o livro é como "um fluxo lento de lava, que escorre como um vasto rio negro de palavras".

É uma escrita habilmente construída, quase arquitetada, com frases longas que acompanham o fluxo de consciência de cada personagem, mas que surpreende pelos rumos que toma e pela variação de tom —que vai, sem titubeios, do excêntrico ao prosaico, do solene ao intrigante, do ácido ao desolado.

A melhor metáfora que já ouvi sobre o estilo do húngaro é a que equipara sua escrita a um daqueles rolinhos de tirar pelo, ao qual vai aderindo todo tipo de coisa estranha e inesperada à medida que ele é girado sobre uma superfície.

Cena do filme 'Satántangó', de Béla Tárr, realizado em 1994

Essa habilidade estilística reflete a origem de Krasznahorkai, um judeu de classe média que estudou direito e letras na universidade e sempre trabalhou como intelectual.

"Eu construo as frases na minha cabeça e só quando estou pronto é que as digito no computador à mesa", ele diz, sobre seu processo criativo. "Eu escrevo em direção a um centro da linguagem, combinando duas direções, escrever as frases mais bonitas possíveis e ao mesmo tempo frases que estejam muito próximas da linguagem do dia a dia, que eu ouço em bares e nas ruas."

O texto de "Sátántangó" é denso e parece partir de uma premissa —se você olhar o tempo suficiente para uma mesma imagem, será capaz de enxergar sua imensa complexidade. Essa observação obsessiva resulta, nas mãos de Krasznahorkai, em cenas que se alternam entre a estranheza, a comicidade, a beleza e o horror, podendo ser cruéis como pequenos alfinetes que acertam o leitor.

Talvez o que melhor defina a literatura de Krasznahorkai seja melancolia e sarcasmo. Existe algo de claustrofóbico na narrativa, como se os personagens estivessem confinados a pequenos ambientes ou a uma realidade estática e inalterável.

Um bom exemplo é o médico que passa o tempo na escrivaninha de frente para a janela documentando tudo que vê, o apodrecimento de tudo ao ser redor, pois "deixar de observar coisas aparentemente insignificantes era o mesmo que ceder". Ceder à morte ou à inevitabilidade de uma vida miserável e sem sentido?

É possível que, assim como a maior parte dos personagens do romance, você se pegue sonhando com um cobertor e um prato de sopa quente. "Sátántangó" é como um caldo espesso, que deve ser sorvido em pequenos goles, para não exacerbar os sentidos e ser possível de saborear cada nuance construída pelo chef.

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