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Cisne Negro Cia. de Dança lança 'Esperar o Inesperado' após enfrentar crises

Grupo promove a estreia do espetáculo no Teatro Alfa, em programa que inclui 'Lampejos: Uma Degustação Visual'

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São Paulo

Ao gesto ausente no ar, respondem todos os sentidos da imobilidade. Não os deslocamentos simétricos, mas a expressão. Dançar parado —para, então, alcançar o sentimento visceroso, a verdade, morada do corpo. Dançar, assim, com os olhos, as mãos e os dedos dos pés; se precipitar e depois voltar à cena.

Encontrando a expressão na imobilidade, a Cisne Negro Companhia de Dança retorna ao palco do Teatro Alfa com "Lampejos: Uma Degustação Visual", de Andressa Miyazato, e a estreia de "Esperar o Inesperado", criado pela americana Maria Caruso.

Cena do espetáculo "Esperar o Inesperado" - Reginaldo Azevedo/Divulgação

A companhia ressurge depois de duas quedas, a pausa nas atividades no biênio pandêmico por falta de recursos e a morte, em novembro de 2021, de Hulda Bittencourt, fundadora e diretora artística. Agora dirigida por Dany Bittencourt, filha de Hulda, a retomada das atividades segue a versatilidade que notabilizou a escola em seus quase 50 anos de trabalho.

No plano formal, as duas coreografias pouco se assemelham. "Lampejos: Uma Degustação Visual" resgata a tradição da dança japonesa, enquanto "Esperar o Inesperado" mais parece uma afirmação da estética contemporânea, sobretudo a americana.

O programa se dá, portanto, num contraste, entre Oriente e Ocidente, que se une na expressividade. Atadas ao chão, as coreografias não se perfazem no ar, mas em dois olhares distintos.

De origem japonesa, Miyazato criou "Lampejos: Uma Degustação Visual" utilizando fundamentos do butô, manifestação artística e filosófica que surgiu no Japão nos anos 1950. Na época, Tatsumi Hijikata, Takao Kusuno e Kazuo Ohno usaram o corpo para reagir aos horrores causados pelas bombas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki.

Aos ocidentais, anos de exegese não foram suficientes para definir o butô. Com um gestual melancólico, parece transitar entre um teatro sem fala ou uma dança sem movimento. "O mundo que você busca é como aquele útero materno, isto é, pura loucura. É um mundo inimaginável para um homem vivo", diz um aforismo de Ohno.

Desse modo, "Lampejos: Uma Degustação Visual" se inicia com uma bailarina imóvel no proscênio durante longos minutos. Em sua cintura, está amarrada uma faixa branca, que se estende até o fundo da caixa cênica, simbolizando o cordão umbilical. A imobilidade daquela mulher se refere ao conceito de corpo morto, tão influenciado pelo expressionismo e o zen-budismo. Segundo Ohno, o corpo esvaziado daria leveza à alma, podendo o movimento imprimir seu significado.

Na cena, há também o duplo sentido da gravidade. A força negativa que o solo exerce e o próprio momento por que a companhia passou. A bailarina chega a pousar a mão na testa, num ato de lamentação. Ex-aluna da Cisne Negro, Miyazato esteve em agosto em São Paulo para ensaiar os dez bailarinos que compõem o espetáculo. Com ela, veio também o compositor e multi-instrumentista francês Jean-Jacques Lemêtre, um expoente da música experimental que integra o Théâtre du Soleil, em Paris.

Dono de uma coleção de 3.000 instrumentos, tendo criado cerca de 800 deles, ele se valeu da microtonalidade, sempre presente em suas composições, para ambientar o espetáculo. Em outras palavras, ouvimos, em "Lampejos", aquela música asiática plangente, que explora os limites entre o ruído e o silêncio.

Para dar vida à tensão musical, um dos bailarinos se agacha e gira com muita velocidade o braço direito, como se prenunciasse um grande acontecimento. Mas nada ocorre, porque o movimento parece preso, não se realiza. Não por acaso, os bailarinos rolam no chão e ficam abraçados aos próprios corpos, num recolhimento à intimidade.

Mas nada é tão característico do butô quanto a ideia de olho de peixe, retomada na coreografia de Miyazato. O conceito traz em si a imposição de um paradoxo bem ao modo zen. Se o peixe é um corpo vivo, seu olhar é basso, próprio de um morto. O bailarino, desse modo, deve manter os olhos bem abertos, em alerta, mas seu olhar não enxerga ninguém.

Nesse sentido, "Esperar o Inesperado" não poderia ser mais diferente. Em sua obra, Maria Caruso também valoriza a expressão, mas desejando individualizar a experiência de cada integrante da companhia. Também em agosto passado, ela esteve em São Paulo para desenvolver a coreografia, trabalhando com os seis bailarinos, recolhendo elementos da história de cada um deles.

Caruso mesclou estilos e temporalidades, aproveitando o repertório do grupo. No início da coreografia, uma bailarina veste as sapatilhas, dançando nas pontas dos pés, em aceno ao balé clássico. Enquanto isso, os demais recolhem os braços, balançam a cabeça e espalmam as mãos. O bailarino ali se tipifica, se tornando um arquétipo.

"Esperar o Inesperado" é, afinal, um espetáculo sobre a sexualidade humana, revela a música, apelativa. Ao estilo house music, só ritmo, os bailarinos exercitam a liberdade criativa, formando pares que remetem à vida noturna.

Por mais de uma vez, ficam lado a lado no palco, indo na direção da plateia, como se estivessem desfilando na passarela. Decidido, o artista se apresenta ensimesmado. Seu olhar é frontal e mira o espectador, entrevendo toda a libido que o corpo emana —e preserva.

Agora, a visão não volta para si, mas para o outro. Para Ohno, os olhos poderiam equilibrar expressão e pensamento. "Cuide bem de seus olhos, existem danças assim, só de olhos."

Cisne Negro Companhia de Dança

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