Luiz Galvão viveu de apostas no bicho e mesadas de João Gilberto após Novos Baianos

Poeta baiano-hippie, artista morto neste sábado fazia convite à vida sem a mácula da neurose, da grana e da adequação social

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São Paulo

Daqui para frente, quando você cantar os versos "eu sou amor da cabeça aos pés", "minha carne é de Carnaval/ o meu coração é igual" e "acabou chorare, ficou tudo lindo"; ou, ainda, "quando eu cheguei tudo, tudo/ tudo estava virado", "por que não viver?/ se não há outro mundo" e "assim vou lhe chamar/ assim você vai ser", mesmo que de forma distraída, seu gesto vai conferir eternidade a Luiz Galvão, letrista dos Novos Baianos que morreu em São Paulo, aos 87 anos, neste sábado (22).

Nos anos 1970, sua poética foi uma aparição alienígena na música popular brasileira. Cobertas por melodias de Moraes Moreira, Pepeu Gomes e Jorginho Gomes, suas letras eram joviais, espontâneas, hedonistas, baiano-hippies e plenas de gírias dos cabeludos.

Galvão portava um convite à vida sem a mácula da neurose, da grana e da adequação social. E não deve ser esquecido seu acréscimo de alegria no mundo cultural, em um momento de repressão política, exílio e morte. Na vida comunitária, com psicodelia, os músicos inventavam uma nova família.

Da esquerda para à direita, os músicos Paulinho Boca de Cantor, Luiz Galvão, Pepeu Gomes (ao fundo) e Baby do Brasil, da banda Novos Baianos
Da esquerda para à direita, os músicos Paulinho Boca de Cantor, Luiz Galvão, Pepeu Gomes (ao fundo) e Baby do Brasil, da banda Novos Baianos - Acervo UH/Folhapress

A dupla Galvão e Moraes compôs as clássicas "A Menina Dança", "Acabou Chorare", "Dê um Rolê", "Mistério do Planeta", "Preta Pretinha", "Tinindo Trincando" e "Besta é Tu", esta também com Pepeu. Uma atrás da outra, era ferro na boneca. Sem perder a vitalidade nas décadas seguintes, as canções dos Novos Baianos se tornaram uma experiência duradoura e intergeracional.

"Sentíamos uma grande admiração pela arte dos tropicalistas e percebíamos pontos de afinidades, como a vontade de fazer o bonito, de ser ousado e, principalmente, o revolucionário. Fomos despertados por isso", escreveu Galvão no livro "Novos Baianos – A História do Grupo que Mudou a MPB". Além disso, como lembra Rubens Carsoni, especialista em contracultura, "os Novos Baianos mostraram o caminho de volta para casa à juventude hippie setentista que não gostava de futebol nem de samba."

Nascido em Juazeiro, na Bahia, em 1935, Galvão era o mais velho dos Novos Baianos e o único exclusivamente poeta. De seu encontro com Moraes Moreira, em 1968, formou-se o núcleo do grupo, que aglutinaria Paulinho Boca de Cantor, Baby, Pepeu e Jorge Gomes. "Já que a esquerda mais aberta não sacou a nossa periculosidade, logicamente a direita também não vai sacar", disse Galvão aos parceiros, antes do show de estreia "O Desembarque dos Bichos Depois do Dilúvio Universal", que ocorreu no Teatro Vila Velha, em Salvador, em 1969.

Conterrâneo de Galvão, João Gilberto desembarcou no apartamento dos Novos Baianos, em 1971, e os atraiu hipnoticamente para a tradição do samba. O álbum "Acabou Chorare", de 1972, veio dessa simbiose transformadora da sonoridade da trupe e da própria música brasileira. Cinco anos atrás, em entrevista a este repórter, Galvão rememorou a amizade com João e sua importância nas mudanças formais do conjunto.

"Morávamos perto em Juazeiro. Eu era colega de escola de Juveninho, seu irmão da minha idade. Então, não lembro como, o conheci desde sempre. João era mais próximo do meu irmão Dagmar e juntos começaram a tocar violão. Eu assistia a ele cantar em seu primeiro conjunto em Juazeiro, no estilo Orlando Silva. Quando soube do ‘Chega de Saudade’ já estava um reboliço na cidade. Achei uma obra-prima."

O letrista não esqueceria a solidariedade do amigo. "João foi fundamental, nos mostrou a verdadeira música brasileira. ‘Acabou Chorare’ é o resultado desse olhar de mestre. A ligação é eterna. João é como um pai para mim. Um dia, estava zerado e fui pedir dinheiro emprestado para ele. Rapaz, ele me deu um esporro: ‘Eu sou banco ou agiota, que é quem empresta dinheiro, esperando receber de volta? Amigos repartem o que têm'. A partir daí, sempre que me encontrava, me dava uma grana, às vezes em dólares, ou então telefonava e pedia o número de uma conta."

O fim dos Novos Baianos, em 1979, teve um impacto emocional e financeiro para Galvão. Durante algum tempo, ele viveu de mesadas de João Gilberto e de apostas no jogo do bicho. "Caso eu tivesse levado o grupo à frente com outros músicos e cantores de qualidade, sobreviveríamos com o texto no mesmo nível, mas faltaria a vida que os Novos Baianos têm no palco, toda a compreensão de nos aceitarmos no aglomerado daquela convivência, recheada de aventuras e de alegria. Foi como se estivéssemos nascendo, porque realmente renascíamos a cada momento", ele afirmou no livro de memórias.

Internado no Incor, Luiz Galvão se recuperava de um infarto. A cerimônia de cremação acontece nesta segunda-feira (24), em São Paulo. O poeta desejava que uma bandeira do Vasco cobrisse seu corpo e que suas cinzas fossem jogadas na correnteza do rio São Francisco, em Juazeiro.

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