Descrição de chapéu

Fernando Campana criou obras com o irmão que desafiaram o design

União das personalidades e amor aos materiais gerou móveis únicos, imaginativos e que desafiam limites

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Winnie Bastian

É curadora e jornalista especializada em design

Ressignificar é um verbo que tem sido conjugado à exaustão, sobretudo nos últimos anos. Mas, no léxico de Fernando e Humberto Campana, ressignificação é palavra-chave desde que começaram seu trabalho como dupla criativa, nos idos dos anos 1980.

Os irmãos Fernando e Humberto Campana, dupla de designers brasileiros
Os irmãos Fernando e Humberto Campana, dupla de designers brasileiros - Vavá Ribeiro/Divulgação

Pelas mentes e mãos dos irmãos paulistas, materiais prosaicos como ralos, mangueiras, papelão, arame e cerdas de vassoura ganharam novas leituras. Um trabalho nada cartesiano e que era dificilmente compreendido então, visto que ainda imperavam os dogmas do design moderno —"a forma segue a função" e afins.

As primeiras pessoas a apostarem na dupla foram a jornalista e crítica de design Maria Helena Estrada e a galerista Adriana Adam. Elas viram ali uma produção genuína e incontaminada, que não remetia a nenhuma referência conhecida. Convidaram os irmãos a expor sua primeira coleção na galeria de Adam, a Nucleon 8, em 1989.

Na época, os Campana tinham criado uma série de cadeiras de ferro bruto, sem revestimento ou pintura e com uma pegada escultórica —eram as "Desconfortáveis".

Em vez disso, sobravam originalidade e vigor expressivo a elas. Tanto que, no ano seguinte, a conceituada revista italiana Domus dedicaria uma reportagem à dupla, assinada pelo crítico Marco Romanelli.

Naquele momento, os irmãos já começavam a experimentar para além da serralheria. Incorporavam, em seus produtos, o uso de elementos prontos como matéria-prima. Martelos de borracha se convertiam em
encosto de cadeira, mangueiras de jardim eram transformadas em assento, ralos davam forma a tampos de mesa.

"Para nós é um gesto espontâneo reinterpretar os objetos de design por meio da nossa experiência cotidiana. Podemos definir essa atitude como uma espécie de antropofagia. Absorvemos tudo, dos gestos informais de quem recolhe papel ou latinhas pela rua, até os mecanismos das grandes indústrias, passando pela maneira de se trabalhar no campo", declarou Fernando no livro "Campanas", de 2003.

Ao deslocar os objetos de sua função original, a dupla não apenas inovava, mas usava uma estratégia inteligente para viabilizar seus móveis —já que não podiam ter acesso a máquinas e processos industriais, tiravam partido de itens já industrializados nas suas peças artesanalmente no estúdio da dupla.

Mais tarde, alguns desses móveis viriam a ser fabricados por indústrias italianas, como a célebre cadeira "Vermelha", em que uma trama de cordas de algodão faz as vezes de estofamento.

A cadeira "Vermelha" (1993-1998), obra dos irmão Campana na exposição "Anticorpos - Fernando e Humberto Campana - 1989-2009", no CCBB de Brasília, em 2011 - Folhapress

De lá para cá, um longo e criativo caminho foi trilhado pelos irmãos Campana. Do "design da escassez" —como se referiu Fernando em uma das entrevistas que me concedeu junto a Humberto —até a experimentação com materiais nobres, como mármore, couro e bronze fundido.

Da produção conjunta até a criação de trabalhos solo —como uma exposição de Fernando com desenhos e esculturas na galeria Baró em 2017.

Do estranhamento ao reconhecimento pelo público, pela imprensa, pela crítica, por galerias e museus, suas criações integram a coleção permanente do Centre Georges Pompidou e do Musée des Arts Décoratifs, ambos em Paris, e do MoMA, em Nova York. Da produção e comercialização autônoma a contratos com marcas como Baccarat, Louis Vuitton, Edra, Fendi e Lacoste.

Hoje, os Campana são um verdadeiro fenômeno, conhecidos não apenas pelos profissionais da área, mas pelo público em geral —talvez apenas Philippe Starck se compare, quando o assunto é fama, embora o Google traga quase o dobro de resultados para "Campana Brothers".

A que se deve tamanho sucesso? Em toda a sua trajetória, alguns fatores se mantiveram constantes no trabalho dos irmãos. A originalidade e liberdade no projetar, que não se prende a tendências nem a atender definições; o amor aos materiais, banais ou valiosos; a presença da manualidade, antídoto a qualquer tipo de massificação, e que eles conseguem incorporar até na produção industrial.

Interessante notar como as diferenças entre suas personalidades no início da carreira —Fernando mais extrovertido, comunicativo e racional; Humberto mais introspectivo, poético e intuitivo— se mostraram complementares e jogaram a favor dessa parceria, como lembrou o primogênito há alguns anos.

"Eu tinha passado 15 dias no rio Colorado fazendo rafting. Um dia meu barco virou e meu salva-vidas estava aberto. Caí dentro de uma espiral, quase morri.

Cinco horas depois, desenhei uma cadeira de ferro que tinha a espiral vazada. Chegando ao Brasil eu fiz essa cadeira e, com o que saiu, o Fernando fez uma outra cadeira espiral —eram a ‘Positivo’ e a ‘Negativo’. É muito simbólico isso", disse ele.

Com o tempo, as características foram se equilibrando: Fernando, antes mais intuitivo, aprendera a dar mais ouvidos à sua intuição e Humberto passara a racionalizar mais, me contaram certa vez.

Com criações que questionavam o status quo do design internacional e retratavam o Brasil de maneira particular, Fernando e Humberto não apenas colocaram o design nacional na pauta mundial como abriram caminho para os limites entre design e arte serem mais explorados. Nos resta agradecer e reverenciar —e desejar que Humberto dê continuidade a esse trabalho excepcional.

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