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mostra de cinema

'Quando o Carnaval Chegar' arrepia com sua alegria brasileira

Filme imenso de Cacá Diegues, na Cinemateca, tem Chico, Nara e Bethânia afundados em seus problemas

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Rever um filme que chega aos 50 anos é uma aventura fabulosa, seja para quem o viu no lançamento, seja para quem chega agora. Infelizmente, faço parte da primeira dessas categorias.

Infelizmente, digo, porque 1972 significa para minha geração que estávamos há oito anos sob um regime militar e, o que ainda não sabíamos, que assim permaneceríamos por mais 13 anos. Para o cinéfilo daqueles dias a vida era doce, porque sempre havia bons filmes, e amarga, entre outras porque muitos deles eram proibidos ou retalhados.

Nara Leão, Chico Buarque e Maria Bethânia em 'Quando o Carnaval Chegar', de Cacá Diegues
Nara Leão, Chico Buarque e Maria Bethânia em 'Quando o Carnaval Chegar', de Cacá Diegues - Arquivo Cinemateca Brasileira

Assim, um filme como "Quando o Carnaval Chegar" merecia ser visto com desconfiança: não só porque passou pela censura como por ter o atrevimento de ressuscitar o musical carnavalesco, promover uma reescrita da chanchada bem naquele momento.

Inútil dizer que era também um tempo de sectarismos. Glauber, Rogério, Bressane, para citar apenas alguns, estavam expatriados. Sem falar nos muitos exilados internos. Ou nos torturados... Em vez de tratar disso, Cacá Diegues saía-se com aquela explosão de luz e cores, enquanto Jabor e Joaquim Pedro encaravam o trágico de "Toda Nudez Será Castigada" e "Os Inconfidentes". Ao mesmo tempo, era impossível desgostar de "Quando o Carnaval Chegar", pela música, pelos atores, pelos cantores do rádio, pela beleza das imagens.

Passei 50 anos sem rever esse filme, o que talvez justifique o entusiasmo e a alegria com que o fiz agora. Ok, o ciclo "1972 – 50 Anos" (bela curadoria de Paulo Sacramento, diga-se) anuncia ao mundo que a Cinemateca Brasileira está de volta, e com a melhor projeção de São Paulo de volta a sua sala principal.

Segundo, porque informa que a Cinemateca pretende se lançar de cabeça no setor de exibição, que nunca foi o seu forte. E terceiro porque descobri em "Quando o Carnaval Chegar" um filme imenso e um clássico que não fui capaz de apreciar como merecia.

Talvez não deva levar a culpa disso sozinho. Em todo caso, eu pensava que Cacá Diegues, ao fazer esse filme, parecia um alienado, incapaz de notar o país em que vivia. Talvez o tenha acusado intimamente de se apropriar da antropofagia chanchadesca que o cinema novo renegara e a geração seguinte (a minha, afinal) havia reencontrado.

Agora percebo o tamanho do equívoco. Por um lado, há de se notar que o filme traz, com disfarçada melancolia, a marca de seu tempo. Segundo, porque era como se Diegues dissesse, ali, que não havia ditadura capaz de segurar a alegria que o Carnaval, a música, o Brasil e o cinema eram capazes de criar. Por fim, porque ninguém é dono da antropofagia nem da chanchada.

Por isso, fiquei arrepiado logo de cara, quando Nara, Chico e Bethânia irrompem num palco, num plano imóvel, que lembra o "Alô, Alô Carnaval" de Adhemar Gonzaga, cantando "Os Cantores do Rádio. Por sorte logo saltamos para o exterior. E segui comovido com a entrada de Hugo Carvana e Antonio Pitanga. E em seguida, com a chegada discreta e arrebatadora de Ana Maria Magalhães.

Enredo trivial: Carvana como o empresário sempre às voltas com um show ameaçado de acabar, Pitanga passando de motorista a astro do show, os cantores afundados cada um em seus problemas. E, por fora, José Lewgoy, o Anjo, nosso mais célebre vilão das chanchadas, ameaçando acabar, literalmente, com a vida do empresário caso o show não desse certo. Uma mistura de gorila com sócio da Fiesp. Ao lado, seu fiel ajudante de ordens, Wilson Grey, bandido como sempre.

Quem quiser que veja isso como quiser. A mim parece que a oposição é entre a ordem unida (do Anjo) contra o improviso, a indisciplina e a carioquice, em suma, do grupo de músicos.

E, plano após plano, sendo que muitos são belíssimos planos-sequência, sendo que boa parte deles foram rodados num hotel quitandinha ainda vivo, é dado ver que Diegues tanto mostra o próprio talento como o de seus atores e técnicos (em especial a câmera na mão insuperável de Dib Lutfi). Não se envergonha de reencontrar aquele plano final de "Deus e o Diabo", com o mar invadindo a terra atrevidamente.

Não, Cacá Diegues não é o gênio que Glauber foi. Mas está longe de ser um discípulo passivo ou um imitador, como muitos pensaram (talvez até eu, mas francamente não lembro). Longe disso.

As personalidades são bem distintas. Glauber era trágico, sempre encarou a tragédia brasileira, a impossibilidade de ser a nação que poderia, algo que se vislumbra, mas é sempre truncado. Seus personagens-chave são os Diaz, os Antonio das Mortes. Cacá, ao contrário, sempre nos lembrou que as cores, os ritmos, os rostos do Brasil eram prova de que todos os obstáculos eram obstáculos, mas não impedimentos: no limite, o Rio garantia.

Cinquenta anos, porém, não são bolinho. Aquela praia deserta, agora é ocupada selvagemente pela arquitetura selvagem (e outras selvagerias) da Barra da Tijuca; malandros tipo Carvana (ou Lourival) já não se fazem mais, o morro onde o Cuíca (Pitanga) exercia seus dons de instrumentista... o que será ele hoje? Elke Maravilha ainda se fazia chamar Elke Evranilde ou algo parecido.

Se ao filme de Diegues não falta melancolia (por sinal está bem presente na música de Chico Buarque), nele se respira, em todo caso, um Rio hoje dificilmente reconhecível. Nossa utopia já não passa pelo Rio, e Ipanema parece que já não produz garotas de Ipanema.

Mas o filme fica como testemunho de um tempo difícil, mas que nem de longe perdia de vista a utopia Tupi. De um tempo em que, nem percebíamos, filmes ainda se faziam com uma ideia na cabeça e no fim das contas pouca produção (ah, eu achava que a mera filmagem em cores já era uma traição aos princípios cinemanovistas).

Quando o Carnaval Chegar

  • Elenco Ana Maria Magalhães, Antônio Pitanga, Chico Buarque
  • Produção Brasil, 1972
  • Direção Cacá Diegues
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