Expressão 'pessoas que menstruam' defende vidas trans, diz Élle de Bernardini

Artista apoia o uso da linguagem neutra e questiona conceito de mulher em resposta a Djamila Ribeiro

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São Paulo

A artista Élle de Bernardini, que em seu trabalho aborda a intersecção entre gênero e sexualidade e a história da arte, trata neste depoimento do termo "pessoas que menstruam". A expressão vem gerando debates a partir de textos neste jornal da filósofa e colunista Djamila Ribeiro, que não quis falar com a reportagem.

Após a publicação da coluna "Nós, mulheres, não somos apenas 'pessoas que menstruam'", a artista respondeu a Ribeiro com uma série de posts nas redes sociais, mas relata ter sido bloqueada e diz que a filósofa cortou o diálogo ao tomar essa atitude.

A artista Élle de Bernardini - Élle de Bernardini/Divulgação

Ribeiro afirma que não conhece a artista. Diz também que "as diretrizes minhas e das pessoas que me auxiliam com as minhas redes são: se faltou com respeito, se dirigiu a mim de forma desrespeitosa, racista, ofensiva, sem se ater aos argumentos expostos, a regra é bloquear". "Talvez possa ter sido o caso da artista em questão.".

Bernardini, de 31 anos, é a primeira mulher transgênero a ter uma obra no acervo de um museu público no país, o Museu de Arte do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. Seu trabalho já foi exposto em instituições importantes, como a Pinacoteca do Estado de São Paulo, o Masp, o Museu de Arte de São Paulo, e o Museu de Arte do Rio, o MAR. Ela participou da 12ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre.

Leia, a seguir, um depoimento da artista.

A sociedade e a linguagem caminham juntas —o avanço da sociedade se dá por meio da linguagem e vice-versa. Então uma linguagem neutra, como o termo pessoas que menstruam, que não têm gênero nem masculino nem feminino, é resultado de décadas de estudo da teoria queer.

A teoria queer tem como uma das propostas a chamada revolução linguística, que é retirar os gêneros da linguagem, porque desse modo vamos garantir a legitimidade de corpos que fogem à normalidade, como por exemplo os corpos trans. Essa proposta de revolução linguística é para diminuir as violências e produzir inclusão dessas pessoas no campo da sociedade, incluí-las no debate.

Se determinamos que mulher é aquele sujeito que possui um par de peitos e órgãos reprodutores [femininos], todas que não tiverem essas características —como as mulheres trans ou até mesmo mulheres cis que nasceram sem— vão ficar de fora do debate.

Esse é a grande questão e a importância de se ter o termo pessoas que menstruam. Esse termo é uma solução. Ele é inclusivo, não deixa ninguém de fora do debate —vai incluir tanto as mulheres cisgênero como os homens transgênero. O termo torna esses corpos legíveis dentro do discurso social. É um avanço.

Historicamente a menstruação é inerente à categoria de mulher, do feminino. Eu sou uma mulher trans, não menstruo, mas um homem trans menstrua. Como a gente vai entender esse corpo que menstrua, mas que não é mulher?

A Djamila deveria ter deixado claro para o leitor de que ponto ela parte no discurso dela. Ela é negra, mas ela é uma mulher cis, a "mulheridade" dela não vai ser questionada socialmente como a "mulheridade" de uma pessoa trans.

Quando ela traz a ideia de que ela quer ser vista como mulher e não como uma pessoa que menstrua, ela tem que se fazer a pergunta —que mulher é essa? Isso é uma pergunta que a Djamila teria que responder a nós, e por isso é importante que ela retorne ao debate.

Simone de Beauvoir, em 1949, quando publica o livro "O Segundo Sexo" e escreve aquela frase famosa "não se nasce mulher, se torna mulher", ela diz ali que não existe um conceito universal e nem ocidental a respeito do ser mulher.

Isso vem ao encontro do andamento da sociedade hoje em dia. Nós já compreendemos os corpos numa maneira mais amplificada, como corpos fluidos, como corpos falantes, que é um termo que o [filósofo] Paul Preciado vai usar para todas as pessoas.

Quando a Djamila escreve para um jornal de circulação pública, ela precisa ter cuidado redobrado ao colocar questões de gênero, porque vivemos num país que maltrata e assassina as pessoas por uma questão de gênero. Um leitor desavisado pode usar os argumentos da Djamila em favor da própria transfobia.

O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo, e mais da metade dessa população é negra. Então voltamos à pergunta —que mulher é essa? É a mulher negra cis ou é a mulher negra trans, também? Porque a mulher negra cis não está exposta ao nível de violência que a mulher trans está.

A partir de que ponto Djamila quer determinar o gênero de mulher? Isso é retroceder no tempo, à década de 1960, quando as feministas buscavam o conceito universal de ser mulher. Porque me parece que o discurso dela só olha para a mulher cis, não para a pessoa trans.

Então é a comunidade trans que está sendo afetada. E isso é perigoso, porque a comunidade já é massacrada e violentada.

A briga por uma linguagem neutra é justamente para salvaguardar as vidas dessas pessoas, fazer com que tenham acesso à educação, à saúde, a todo o resto que elas têm direito sem sofrerem com transfobia e discriminação de gênero.

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