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'Ruído Branco' de Noah Baumbach adapta livro infilmável de Don DeLillo

Filme-catástrofe que foge dos clichês hollywoodianos desafia o padrão de vida da classe média americana

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Cartaz do filme 'Ruído Branco', de Noah Baumbach Netflix/Divulgação

São Paulo

Sabe quando você passa a vida toda esperando algo acontecer e, quando finalmente acontece, você se vê sem saber direito nem como reagir nem como decifrar o que está sentindo? Pois foi o que aconteceu comigo e com este filme.

Li "Ruído Branco", do escritor americano Don DeLillo, pela primeira vez na faculdade, nos anos 1990. Por causa dele, decidi que seguiria estudando filosofia, mas viraria repórter. Depois disso, toda vez que eu precisava tomar uma decisão que mudaria o rumo do resto da vida, era na leitura de "Ruído Branco" que eu me recolhia e juntava força e inspiração para dar o passo seguinte.

Adam Driver em cena do filme "Ruído Branco", de Noah Baumbach
Adam Driver em cena do filme 'Ruído Branco', de Noah Baumbach - Divulgação

Minha primeira reportagem publicada em um grande veículo de imprensa escrita foi uma entrevista feita a quatro mãos com o autor do livro para a extinta Revista da Folha, em 1995. Ele estava lançando um outro romance no Brasil, "Libra", em que descrevia a vida de Lee Harvey Oswald, o homem que matou a tiros o presidente americano John F. Kennedy em 1963.

A entrevista foi feita por fax, e a folha foi emoldurada e pendurada na parede de todas as casas em que morei desde então. Sobre "Ruído Branco", Don DeLillo me disse que o romance poderia ser resumido em uma frase: "Quanto maior o avanço tecnológico, mais primitivo o medo". Também afirmou que a sociedade americana se parecia, naquela época, mais e mais com o mundo descrito em seu romance.

Nem Don DeLillo nem Noah Baumbach responderam aos meus pedidos de entrevista para este texto.
Agora, com cartas na mesa, vou fazer o melhor que puder no meio da nuvem de emoções conflitantes para manter o foco no que interessa agora —"Ruído Branco", o filme, que já está em cartaz nos cinemas brasileiros e entra no catálogo da Netflix no próximo dia 30.

Foi a primeira produção original do streaming a abrir um grande festival de cinema. Em Veneza, não foi recebido com muito alarde pela crítica, mas, desde que entrou em cartaz nos cinemas americanos, vem sendo elogiado pela crítica como "o filme-catástrofe perfeito para o momento que vivemos".

Mas nem pense em tentar antecipar o que é "Ruído Branco" lembrando de outros títulos que se encaixam na mesma definição, como "O Dia Seguinte", de 1963, "O Dia da Independência", de 1996, "Armageddon", de 1998, ou "Contágio", de 2011. Nem "Titanic", de 1997. "Ruído Branco" é uma obra inclassificável, porque tem tanto de terror quanto de ironia, fala das coisas mais superficiais e das mais profundas, de coisas mundanas e de coisas extraordinárias.

Dirigido e roteirizado por Noah Baumbach —o cineasta por trás de joias como "História de um Casamento", de 2019, "Frances Ha", de 2012, e "A Lula e a Baleia", de 2005—, o filme tem nos papeis principais Adam Driver e Greta Gerwig, mulher de Baumbach na vida real. Don Cheadle faz o principal coadjuvante, enquanto André Benjamin completa o elenco com um papel menor.

A trilha, fenomenal, foi criada por Danny Elfman, compositor de quase todos os filmes de Tim Burton. Elfman exerce um tipo específico de idolatria em quem foi adolescente nos anos 1980 e 1990 --e fascinado pelas esquisitices do mundo pop. Noah Baumbach, de 53 anos, fez parte dessa trupe.

Elfman era vocalista e compositor da banda Oingo Boingo, que fazia um pop diferente, orquestrado, com letras espertas e shows muito teatrais, e cujos maiores hits são as músicas "Stay", "Dead Man's Party" e "Just Another Day". A banda terminou em 1995, quando Danny já estava completamente mergulhado nas trilhas de audiovisual —é dele, por exemplo, a música tema de "Os Simpsons".

Mas, desde o ano passado, o artista, hoje com 69 anos, corpo sarado e coberto de tatuagens, voltou a lançar singles, fazer videoclipes e se apresentar ao vivo. Isso não quer dizer que tenha passado a se dedicar menos às trilhas. Para este filme, por exemplo, Elfman conseguiu uma proeza. Convenceu a banda nova-iorquina LCD Soundsystem a compor uma música inédita, a primeira desde 2017, chamada "New Body Rhumba", que toca na inesperada e adorável cena final de "Ruído Branco".

A trama pode ser resumida assim: Jack Gladney, vivido por Adam Driver, e Babette, papel de Gerwig, são um casal de classe média americana, que, entre si, somam quatro filhos, alguns de casamentos anteriores. Moram em uma cidade pequena onde Jack é um professor universitário renomado por causa de um curso que criou sobre a história do ditador Adolf Hitler chamado "Nazismo Avançado".

Babette é uma mulher jovem e divertida que abraçou a vida doméstica ao lado de Jack. Ela cuida dos filhos, cozinha, é carinhosa e gentil e, à noite, dá aulas de postura para idosos em um ginásio esportivo. Mas ela tem um segredo: participa de um teste de um medicamento ainda não autorizado pelas agências reguladoras que serve para curar o medo de morrer.

A casa de Jack e Babette Gladney é um entra e sai de crianças e adolescentes com manias e paranoias. Todos falam ao mesmo tempo, cada um com suas peculiaridades, mas todos são muito inteligentes, cultos e interessantes.

Adam Driver em cena do filme 'Ruído Branco' - Wilson Webb/Netflix/Divulgação

Um dos amigos mais próximos de Jack é o professor Murray Jay Siskind, papel do sempre ótimo Don Cheadle, aqui extraordinário. Ele tem um sonho —quer fazer com Elvis Presley o que Jack fez com Hitler, ou seja, transformar seu conhecimento enciclopédico da vida do músico americano, morto em 1977, em um curso universitário de prestígio.

O longa de Baumbach começa com ele em uma sala de aula, mostrando uma sequência de acidentes de carros em filmes americanos. Os veículos capotam, pegam fogo, explodem, caem ribanceira abaixo, uma cena mais hipnótica que a seguinte. Murray insiste que os alunos enxerguem o que há além da violência naquelas imagens.

Ele quer que aqueles jovens reconheçam o espírito de otimismo e do empreendedorismo que possibilitam aquelas cenas. "Há um aprimoramento constante de equipamentos, de habilidades, há desafios sendo vencidos", empolga-se o professor.

As idas da família ao supermercado local, um desses lugares que vendem a atacado e tem mil opções de tudo em embalagens gigantes e corredores imensos, servem como uma meditação a respeito do consumismo desenfreado da sociedade americana, do exagero, da decadência climática, do excesso de lixo que produzimos, da sensação absurda, porém inegável, de que se tivermos itens básicos de higiene e alimentação podemos conseguir, de alguma maneira, driblar a inevitabilidade do fim.

Uma hora, uma nuvem de gás potencialmente tóxico, resultado de um acidente entre um trem e um caminhão, começa a se aproximar de onde mora a família, e toda a população é obrigada a deixar tudo para trás e sair da cidade, sem nenhuma certeza do quão grave é o acidente. Jack fica alguns segundos fora do carro quando precisa abastecer o veículo para deixar a cidade, e passa a agir como se sua morte fosse iminente. O professor, então, se lembra que, talvez, sua mulher Babette saiba uma forma de aliviar essa aflição.

É exatamente por causa dessas ilações surpreendentes, além de teorias sobre o excesso —e a falta— de informações a que temos acesso, que o livro de DeLillo que deu origem a este filme foi sempre considerado infilmável.

Mas eis ele aí, em cartaz, e, daqui a pouco, na TV da sua sala. Que curiosidade de saber o que o Don DeLillo achou disso tudo.

Ruído Branco

  • Quando Em cartaz nos cinemas e estreia na Netflix na sexta-feira (30)
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Adam Driver, Don Cheadle, Greta Gerwig
  • Produção EUA, 2022
  • Direção Noah Baumbach
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