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Morte horrível da Livraria Cultura não é surpresa, mas não deixa de ser doída

Falência do grupo decretada nesta semana é o clímax de história que mistura boas memórias e uma certa decadência

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Prateleira esvaziada da Livraria Cultura, na avenida Paulista, que teve falência decretada pela Justiça Zanone Fraissat/Folhapress

A Livraria Cultura imprimiu imagens icônicas na memória do paulistano —o carpete quadriculado coalhado de clientes deitados folheando livros, o dragão que pendia do teto e os outros bichos de madeira no chão, com gente lendo no estômago deles, as escadarias com ferro preto, a luz amarela, as estantes organizadíssimas.

Fundada em 1947, a Cultura é daqueles pontos com que sempre se tem uma bela história, independentemente da unidade da qual se escolhia virar freguesia. Foram ao longo do tempo quatro lojas no Conjunto Nacional e três em shoppings, o Villa-Lobos, o Bourbon Pompeia e o Iguatemi. Isso sem falar nas outras filiais em mais de uma dezena de cidades, de Curitiba ao Recife.

Clientes se casam dentro da Livraria Cultura da avenida Paulista, em 2012 - 17.nov.2012-Avener Prado/Folhapress

Ao longo dos últimos anos, as lojas vinham perdendo seu brilho. Estava ali diante dos nossos olhos que um dia o pior aconteceria, mas a gente ainda assim se recusava a ver. Não era tarefa fácil. Afinal, como se livrar de um relacionamento antigo e enriquecedor? Como é que se bota uma pedra sobre boas lembranças tão costuradas à vivência da própria cidade?

Em 19 de abril de 2000, Pedro Herz me concedeu uma entrevista neste jornal. Falava sobre a inauguração da loja do Villa-Lobos, então seu quinto endereço (contando o da internet, algo inovador à época), e celebrava os 3.000 metros quadrados que abrigariam CDs, DVDs e revistas.

"Temos bastante espaço, o que é ótimo para quem quiser comprar produtos diferentes em um só lugar", disse o diretor-geral. A conversa, que rendeu à minha carreira ali iniciante a primeira crítica da ombudsman Renata Lo Prete, trouxe consigo outro ponto bem mais relevante.

Os tais "produtos diferentes" de Herz, que por ora significavam apenas itens culturais, foram com o tempo se desdobrando em brinquedos, suvenires e outros artigos de utilidade questionável dentro de uma livraria. O público, que antes se deslumbrava com os livros, aos poucos se dispersava pela loja.

Deve ter havido um tempo em que a Cultura, que teve sua falência decretada nesta semana, pensou que bastassem sua arquitetura, catálogo e o bom atendimento do time de livreiros eruditos para desfrutar do sucesso eterno.

Este último, aliás, um tópico importantíssimo para a relação da livraria com a cidade. Tanto para quem esteve do lado de cá do balcão, quase sempre sendo bem atendido, quanto para os que ocupavam o lado de dentro dele.

Isso porque, no final dos anos 1990 e começo dos 2000, era sonho de consumo entre os universitários ser vendedor de qualquer uma das lojas da empresa —além do contato com tudo que havia de mais atual na cultura (lembremos que a internet ainda engatinhava), o salário não era nada mal.

Até hoje, invejo uma prima que, economizando com afinco parte dos pagamentos de meia década na Cultura, conseguiu juntar dinheiro para dar entrada em um apartamento (isso enquanto a prima jornalista, imprudente, investia o pouco que ganhava nos CDs, DVDs e revistas vendidos nos milhares de metros quadrados de Pedro Herz).

A morte horrível da Livraria Cultura, com editoras encaixotando seus exemplares às pressas diante do mesmo público que um dia já se refestelou ali dentro, não é de todo surpreendente, mas nem por isso fica menos dolorosa.

É claro que há outras tantas livrarias espalhadas pela cidade, nas quais os mesmos livros recolhidos estarão à venda já na próxima semana. É importante, aliás, festejar o surgimento de bons endereços abertos inclusive depois do apocalipse recente, misto de pandemia e desgoverno.

Porém, por mais que não nos faltem lindas lojas, não dá para assistir ao fechamento de outro ponto tão icônico de São Paulo sem mergulhar na melancolia dos que já tiveram de lidar com tantas despedidas. Ao apagar suas luzes, a Cultura também apaga um pouco da história da gente.

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