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Livros

Livraria Cultura foi um centro de luz para livros cuja leitura valia a pena

Empresa errou na intenção nobre de tornar suas unidades em espaços culturais, mas incentivou o prazer da descoberta

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Antes de pisar na Livraria Cultura, livraria para mim era a Mestre Jou. Na rua Augusta, vários quarteirões abaixo do Conjunto Nacional, onde a Cultura residia ainda discreta, era ali que eu ia com a minha mãe comprar os livros no ano para a escola e um eventual título de Agatha Christie.

Unidade da Livraria Cultura no Conjunto Nacional, localizado na Avenida Paulista, em São Paulo - Zanone Fraissat/Folhapress

Até minha adolescência, os livros que descobria eram em estantes alheias: as do meu tio, o poeta Cacaso, onde conheci de Millôr Fernandes a Eugène Ionesco; a do meu pai, de um ecletismo que ia de "Nem só de caviar vive o homem", de J.M. Simmel, a "Teresa Batista cansada de guerra" (mas não "Gabriela"), de Jorge Amado.

Aí, lá pelo final dos anos 70, minha turma de cursinho me levou para a então pequena Livraria Cultura. Até esse dia, meu destino no Conjunto Nacional era invariavelmente o Cine Astor, mas depois daquela visita, minha prioridade por lá passou a ser a livraria.

O prazer que era escolher um livro em inglês, do estande giratório da Penguin! E o passeio pela estante redonda que recebia os visitantes logo na entrada era sempre revelador.

Em meados dos anos 1980 comecei a frequentar lançamentos na Cultura, sempre o local mais cobiçado —e de prestígio— para uma noite de autógrafos. E quando entrei, na mesma década, nesta Folha, não foram poucas as pautas que tiramos das suas prateleiras, especialmente entre os livros de arte importados.

Pioneira, a Cultura foi das primeiras a abraçar a duvidosa onda de expansão que na virada do século, quis transformar as livrarias em centros culturais. Intenção nobre, entusiasmo míope.

Tanto a Cultura como várias concorrentes talvez tenham esquecido de que não era no tamanho que ganhariam mais leitores, pelo contrário. Amantes de livros são criaturas estranhas: ao mesmo tempo que gostamos de abundância de opções, ficamos felizes com descobertas "secretas".

Quando a Cultura tomou conta do espaço gigantesco do Astor, visitá-la era, como sempre, uma possibilidade de esbarrar em algo novo. Mas o espetáculo da múltipla escolha roubou a intimidade da experiência literária. Foi o fim de uma era.

Meu último grande momento lá foi em outubro de 2018, quando lancei a biografia de Elza Soares, com a presença da própria. São Paulo teve então uma daquelas noites de tempestades e, lá pelas tantas, a energia acabou.

Os fãs de Elza, centenas deles, que esperavam seus autógrafos numa fila que circundava os balcões da livraria não hesitaram: ligaram as lanternas de seus celulares e iluminaram a diva e todo o átrio central.

E é essa imagem, da Livraria Cultura como um centro de luz, um palco para livros que valem a pena serem lidos, que eu vou guardar nessa despedida.

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