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Novo livro de Salman Rushdie mostra que só as palavras saem vitoriosas

'Victory City' retoma temas de interesse do escritor e ecoa sua resistência pessoal ao ataque que custou a ele um dos olhos

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Alexandra Alter Elizabeth A. Harris
Nova York | The New York Times

Em "Victory City", o novo romance de Salman Rushdie, uma poeta e contadora de histórias talentosa usa o imenso poder de sua imaginação para criar uma civilização nova.

Abençoada por uma deusa, ela vive por quase 240 anos, tempo suficiente para testemunhar a ascensão e queda do seu império no sul da Índia, mas o legado duradouro que ela deixa é um poema épico.

O escritor Salman Rushdie - Joel Saget/AFP

"Tudo o que resta é essa cidade de palavras", escreve a poeta, Pampa Kampana, no final da sua epopeia, antes de enterrar o texto em uma urna e o deixar lá como mensagem para as gerações futuras. "Só as palavras vencem."

Apresentado como se fosse o texto de um épico medieval em sânscrito agora redescoberto, "Victory City" trata da criação de mitos, da força das histórias, e do poder duradouro da linguagem. É também um regresso triunfante ao palco literário, para Rushdie, que passou meses afastado da vida pública, se recuperando de um ataque brutal a facadas que sofreu no palco de um evento cultural no estado de Nova York, no ano passado.

O ataque a Rushdie abalou o mundo literário. Por décadas, Rushdie foi venerado não só como romancista mas como um ícone da liberdade de expressão, que enfrentou ameaças de morte por causa de seu romance "Versos Satânicos", mas continuou a escrever e a falar contra a intolerância. Depois do ataque contra ele, no ano passado, colegas escritores e figuras culturais expressaram indignação e se reuniram em vigílias para homenagear o autor, contando histórias pessoais sobre Rushdie e lendo passagens dos seus romances.

Agora, com o lançamento de "Victory City", os escritores voltam a se reunir em torno de Rushdie para promover o seu trabalho. Muitos veem o lançamento como o momento de celebrar a imaginação exuberante e lúdica de Rushdie, de fazer com que as atenções retornem ao seu trabalho de ficção, e de saborear o fato de que Rushdie continua aqui para testemunhar a recepção que seu romance receberá.

Alguns dizem que a mensagem dominante do livro –a de que as histórias durarão mais do que os confrontos políticos, guerras, o colapso de impérios e civilizações– ganhou ressonância adicional à luz do que aconteceu a Rushdie.

"Ele está dizendo algo de bastante profundo em ‘Victory City’", disse o romancista Colum McCann, amigo de Rushdie. "Está dizendo que as pessoas jamais serão privadas do ato fundamental de contar histórias. Diante do perigo, e mesmo diante da morte, ele consegue dizer que contar histórias é uma moeda com a qual todos nós podemos contar."

Rushdie entregou "Victory City" à sua editora, a Random House, em dezembro de 2021, e a casa anunciou o projeto na metade do ano passado, não muito antes do ataque a Rushdie. McCann disse que, durante sua recuperação, o escritor vem antecipando ansiosamente as respostas ao novo romance.

Quando McCann enviou um email a Rushdie e pediu sua permissão para ler passagens de "Victory City" em um evento realizado em dezembro no Center for Fiction, Rushdie ficou empolgado, disse o amigo.

"Senti uma espécie de ferocidade de espírito nele", disse McCann, uma sensação, da parte de Rushdie de que "vou usar a poderosa arma da linguagem, e ela é mais forte do que qualquer coisa que possa ser empregada para me atacar."

O escritor Salman Rushdie após atentato que lhe tirou a visão do olho direito, em foto postada no Twitter em 7/2/2023
O escritor Salman Rushdie após atentato que o fez perder a visão do olho direito - Twitter/Reprodução

A editora de Rushdie informou que ele não estava disponível para comentar. Amigos e colegas escritores relatam que sua recuperação está progredindo; ele está acompanhando o que acontece no mundo, começou a planejar novos projetos literários, e continua a manter o senso de humor que sempre teve.

"Ele é extraordinariamente resistente", disse o romancista Hari Kunzru, que disse ter visitado Rushdie recentemente, e que ficou entusiasmado por encontrar o escritor bem-humorado e disposto a conversar sobre seu trabalho. "Ele continua a ser o Salman que sempre foi. Perdeu o olho e ainda está se recuperando de algumas das outras lesões, mas nada disso acabou com ele."

Kunzru disse esperar que "Victory City" devolva as atenções para a ficção de Rushdie e sirva como um lembrete de que ele é acima de tudo um romancista, mais do que um defensor da liberdade de expressão ou uma vítima de uma agressão cruel.

"O novo livro é divertido, alegre, amplo, um livro extravagante, que o mostra expressando suas plenas capacidades e usando todo o seu poder criativo", disse o amigo. "Isso deveria servir para nos lembrar de que ele é mais um romancista e um contador de histórias do que um símbolo político."

Rushdie é um dos escritores mais célebres do planeta há muito tempo. Já havia publicado 14 romances, antes de "Victory City", muitos dos quais obras fantásticas que misturam história e política com elementos de realismo mágico.

Nascido em Mumbai —então Bombaim—, na Índia, em 1947, publicou seu primeiro romance, "Grimus", uma história de ficção científica que ele definiu como "merecidamente esquecida", em 1975.

Em 1981, publicou "Os Filhos da Meia-Noite", uma fábula de realismo mágico ambientada na Índia do período imediatamente posterior à separação entre o país e o Paquistão, um trabalho que rendeu a ele o Booker Prize e foi o primeiro degrau para sua carreira.

Sete anos mais tarde, a vida de Rushdie foi completamente desordenada quando ele lançou "Versos Satânicos", um romance que incluía um retrato fictício da vida do profeta Maomé, com representações que alguns muçulmanos consideraram como blasfemas.

Pouco depois, o líder supremo do Irã, aiatolá Ruhollah Khomeini, divulgou uma declaração apelando pela morte de Rushdie e oferecendo uma recompensa de US$ 2,5 milhões para quem o assassinasse e exortando os muçulmanos a atacar o autor. Rushdie passou quase uma década escondido, uma provação que relata em seu livro de memórias, "Joseph Anton".

Depois de a "fatwa" ter sido rescindida, em 1998, a impressão era a de que Rushdie estava saboreando a sua liberdade renovada, e ele expressou gratidão àqueles que o apoiaram e defenderam seu direito de publicar. Ele se mudou para Nova York e se transformou numa presença vibrante na vida literária e cultural da cidade, em mentor para escritores mais jovens e em um conviva sempre animado em coquetéis e jantares.

Esse período de tranquilidade terminou abruptamente em agosto, quando Rushdie foi atacado no Instituto Chautauqua, uma comunidade artística de verão a cerca de 120 quilômetros da cidade de Buffalo, no estado de Nova York, para onde tinha viajado a fim de fazer um discurso sobre a maneira pela qual os Estados Unidos se tornaram um porto seguro para os escritores exilados.

Quando o evento estava para começar, um homem de 24 anos, de Nova Jersey, subiu ao palco inesperadamente, de acordo com procuradores públicos envolvidos no caso, e esfaqueou Rushdie no rosto e no abdome antes que espectadores o conseguissem conter. O agressor, Hadi Matar, foi acusado de tentativa de homicídio e de agressão em segundo grau com uma arma e se declarou inocente.

Pouco depois do ataque, um grupo de escritores aclamados —entre eles Paul Auster, Gay Talese, Kiran Desai e A.M. Homes— se reuniu na escadaria da Biblioteca Pública de Nova York, em Manhattan, para ler trechos das obras de Rushdie, incluindo uma passagem de "Victory City".

"Não o conseguiram silenciar", disse Suzanne Nossel, presidente da PEN America, uma das organizações que patrocinou o evento. "A publicação do livro é uma demonstração muito poderosa desse fato".

"Victory City" retoma muitos dos temas que sempre interessaram a Rushdie —o poder dos mitos e lendas para moldar a história, o conflito entre as forças do multiculturalismo e pluralismo versus fundamentalismo e intolerância. De certa forma, é um retorno a obras anteriores de Rushdie —narrativas ricamente imaginadas e de realismo mágico, ambientadas na Índia— e marca um regresso às suas raízes literárias após os seus dois últimos romances, ambos sátiras à política e cultura contemporâneas dos Estados Unidos.

Em "Victory City", Rushdie se inspira em parte na ascensão e no colapso históricos do império Vijayanagar, fundado no século 14 por dois irmãos de uma tribo indiana que pastoreia gado, um pormenor que Rushdie adota no romance.

Nos seus agradecimentos, Rushdie cita mais de uma dúzia de livros que usou em suas pesquisas, incluindo textos acadêmicos sobre o império Vijayanagar, e obras sobre a cultura, política e civilização da Índia medieval.

Salman Rushdie - Reuters

Na visão de Rushdie, a cidade de Vijayanagar —o nome significa cidade da vitória— é um lugar de magia e milagres que deve sua existência à sua criadora, a poeta Kampana, que abençoa sementes e as presenteia aos dois irmãos da tribo de vaqueiros. Ela disse a eles que, se plantassem as sementes em um determinado local, uma cidade surgiria instantaneamente do chão.

Quando sua profecia se torna realidade, ela dá vida à cidade, sussurrando histórias nos ouvidos das pessoas, e imbuindo o novo lugar de um senso de história. Kampana antevê uma sociedade fundada nos princípios da tolerância religiosa e da igualdade entre os sexos, mas é forçada a se exilar, e termina por ver seu império conquistado.

As primeiras críticas ao romance vêm sendo em grande parte elogiosas. A revista Kirkus o elogiou como "entretenimento grandioso, uma história com muitas vertentes, criada por um dos mestres das lendas modernas". No jornal britânico The Times, um crítico definiu o trabalho "um dos livros mais alegres de Rushdie", apontando que "o puro prazer que ele sentiu ao escrever salta da página". A crítica do The New York Times está para ser publicada.

Erica Wagner, escritora e crítica literária que moderou um evento em honra de Rushdie para assinalar a publicação do livro, disse que o romance é "uma prova do poder de contar histórias e do poder das palavras e da narrativa, para o bem e para o mal".

Alguns dos amigos de Rushdie lamentaram que o escritor —famoso por ser gregário e extrovertido, e por gostar dos holofotes— tenha sido forçado ao isolamento em um momento que deveria ser de celebração.

Margaret Atwood, que participou da mesa redonda sobre "Victory City" em companhia de Wagner e do escritor Neil Gaiman, disse que sentia a obrigação de falar sobre o último trabalho de Rushdie, já que o autor não está em posição de aparecer publicamente.

"Precisamos, de alguma maneira, bloquear a tentativa de o calar", disse Atwood. "Ele passou por tanta coisa, todos aqueles anos vivendo escondido, sentindo a ameaça de morte", ela acrescentou. "Ele é, acima de tudo, um contador de histórias."

Tradução Paulo Migliacci

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