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'O Massacre da Serra Elétrica' critica os EUA com enredo de rejeitados

Um dos filmes mais violentos já feitos até hoje, 'slasher' traz a ressaca da Guerra do Vietnã sem evocar monstros sobrenaturais

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São Paulo

Em 1974, ano de lançamento de "O Massacre da Serra Elétrica", os Estados Unidos viviam a ressaca da Guerra do Vietnã, que então parecia sem fim —terminaria de fato no ano seguinte.

O país ainda vivia uma terrível recessão econômica causada, entre outras coisas, pela crise do petróleo. Para piorar, foi nesse ano que o escândalo de Watergate atingiu o alto escalão do governo, causando a renúncia do presidente Richard Nixon.

Em meio a essa crise moral, social e econômica, o cinema americano reagia com filmes críticos, eventualmente pessimistas, ambíguos, frequentemente muito violentos. Era a chamada "nova Hollywood", que reverberava a violência do conflito asiático, mas também dos assassinatos mais marcantes dos anos 1960, dos Kennedys, de Martin Luther King e Malcolm X.

Cena do filme 'O Massacre da Serra Elétrica', de 1974, dirigido por Tobe Hopper
Cena do filme 'O Massacre da Serra Elétrica', de 1974, dirigido por Tobe Hooper - Divulgação

O assassinato do presidente John Kennedy, especialmente, foi marcante, porque deu origem aos motivos terríveis do tiro na cabeça e do atirador, elementos presentes em uma enormidade de filmes da segunda metade dos anos 1960 e da década seguinte.

No cinema de horror desse período, a mudança também é marcante. O que antes era sugerido, trabalhado com efeitos sonoros e sombras, com o monstro sendo pouco visto ou mesmo não visto, ganhava contornos mais explícitos e realistas.

Um exemplo do cinema de horror da sugestão é "Desafio do Além", de 1963, de Robert Wise, e sua habilidade em nos fazer tremer de medo sem mostrar nada, só usando ruídos e criando uma atmosfera.

Na verdade, o cinema de horror começa a mudar no início dos anos 1960, com Alfred Hitchcock, em "Psicose", de 1960, e "Os Pássaros", de 1963. Nesses dois filmes vemos o horror ocupar a tela, mas as produções ainda eram sujeitas ao Código de Produção, também conhecido como Código Hays.

Essa espécie de censura que assombrou o cinema americano por mais de 30 anos começava a se tornar obsoleta em meados dos anos 1960, quando os cineastas passaram a explorar mais diretamente a representação do sexo e da violência.

Dois filmes são emblemáticos dessa virada de chave, ambos de 1968, "O Bebê de Rosemary", de Roman Polanski, que mostra o rosto do bebê demônio num flash de memória da personagem de Mia Farrow, e "A Noite dos Mortos Vivos", de George Romero, em que vemos os zumbis aparecerem no fundo do enquadramento e se aproximando da câmera para assumir o protagonismo na tela.

Na década de 1970, os monstros assumem definitivamente o quadro, habitam as imagens de modo a incomodar o espectador, tornando os filmes mais tensos, com uma violência exacerbada.

Um grande exemplo dessa mudança é "O Massacre da Serra Elétrica". O filme seminal de Tobe Hooper apresentou o terrível monstro Leatherface, criado por Hooper e pelo roteirista Kim Henkel. Um dos monstros mais temidos do cinema de horror aparece quase sempre com sua serra elétrica, num balé esquisito e assustador.

Nesse pesadelo cinematográfico, um grupo de amigos faz um passeio pelo estado do Texas rumo à casa de infância de dois deles, mas encontra uma família de rejeitados que se divertem esquartejando jovens para suas refeições.

Três anos antes de "Quadrilha de Sádicos", de Wes Craven, outro longa importante do gênero, Hooper já mostrava os excluídos da América se vingando da sociedade e perturbando o tão almejado "American way of life".

"O Massacre da Serra Elétrica" mostra claramente que o problema estava ali dentro, no seio do sonho americano, sem a necessidade de nomear um inimigo sobrenatural ou estrangeiro, como em "A Profecia", de 1976, de Richard Donner, e o bebê demoníaco nascido em Roma.

Quem melhor comparou esses dois filmes foi o crítico britânico Robin Wood, no essencial ensaio "The American Nightmare", de 1979. Para ele, "A Profecia" é entretenimento burguês, com grandes valores de produção e reafirmação dos valores patriarcais. O filme de Tobe Hooper seria o contrário disso, uma crítica perturbadora a esses mesmos valores e um retrato da opressão familiar.

Quando os jovens param num posto para abastecer, o letreiro diz "we slaughter", ou seja, "nós abatemos", indicando o perigo que havia ali, por mais que a inscrição seja pertinente em um matadouro dos Estados Unidos. O posto vende carne e pertence justamente à família de carniceiros que vai infernizar os personagens.

Na primeira morte, o rapaz é abatido como um boi, com uma marretada na cabeça. Seu corpo entra em convulsão até a segunda marretada, o golpe fatal, enquanto sua namorada espera inocentemente num balanço colocado na frente da casa. Logo em seguida, ela é pendurada num gancho para ser esquartejada, como fazem com o gado.

O fato de ser um dos filmes mais violentos até então não significa que Hooper abdicou da atmosfera. Logo no início, com a narração fria e jornalística do ator John Larroquette, a trilha sonora assustadora e as imagens de restos mortais, somos convidados a uma experiência de horror que até hoje impressiona.

A câmera baixa e rastejante reitera o estilo inventivo desse primeiro longa de Hooper. A família como elemento de destruição remete ao período em que os filmes eram críticos à sociedade e à própria nação.

Ver "O Massacre da Serra Elétrica" hoje é um retorno ao último momento mágico do cinema americano.

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