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Edward Luce

Ocidente se precipita ao achar que mundo todo está do seu lado na guerra da Ucrânia

EUA e Europa confundem consenso local contra Rússia com ideia de que seus valores são universais

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Edward Luce

É editor e colunista do jornal Financial Times

Londres | Financial Times

Um dos argumentos mais frequentemente ouvidos em Washington é que a Rússia agora está globalmente isolada, sendo a China o principal país a reagir em tom ambíguo.

A América corre o risco de se deixar seduzir por sua própria mensagem de relações públicas. A reação do mundo à invasão russa da Ucrânia é muito mais complexa que isso.

Desde 24 de fevereiro, o Ocidente se mobilizou para demonstrar mais unidade do que mostra há anos. Mas a maior parte do mundo aguarda à margem do campo, esperando para ver o rumo que a disputa vai tomar.

O presidente dos EUA, Joe Biden, o da França, Emmanuel Macron, e o premiê do Reino Unido, Boris Johnson, durante encontro na sede da Otan em Bruxelas, na Bélgica - John Thys - 24.mar.22/AFP

Não pela primeira vez, o Ocidente está confundindo sua própria unidade com um consenso global. Um critério enganoso para avaliar essa unidade é a ONU. Na última contagem feita pela organização neste mês, 141 dos 193 países-membros condenaram a violação flagrante da lei internacional cometida por Vladimir Putin.

Mas os 35 países que se abstiveram respondem por quase metade da população mundial. Incluem China, Índia, Vietnã, Iraque e África do Sul. Se somarmos esses países à lista dos que votaram a favor da Rússia, o resultado é mais de metade da população do mundo.

E mais: muitos dos que estão nominalmente contra a Rússia estão protegendo suas apostas. A Arábia Saudita estuda o pedido da China de ser paga por seu petróleo em yuans. Isso ajudaria a enfraquecer o poder do dólar. Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos se negaram a atender aos telefonemas de Joe Biden neste mês quando ele queria que aumentassem sua produção de petróleo –uma desfeita rara a um presidente dos Estados Unidos.

Na semana passada, os Emirados receberam em visita oficial Bashar Al-Assad, o ditador da Síria e aliado próximo de Putin, que os EUA têm na conta de um pária —com razão. Um dos motivos por que Abu Dhabi está reabilitando Assad é que Biden está fazendo pressão pela reativação do pacto nuclear com o Irã, país temido na região, o que liberaria mais petróleo no mercado global.

Mesmo Israel, que pode ser considerado o aliado mais estreito dos EUA, está adotando uma posição neutra, aberta a todas as possibilidades. O primeiro-ministro Naftali Bennett está procurando agir como mediador entre Rússia e Ucrânia e tem feito questão de mostrar-se imparcial.

Dentro de alguns meses, se a Ucrânia continuar a humilhar a Rússia e o Ocidente conseguir manter sua posição unida, tudo isso pode parecer que não vem ao caso. Todo mundo ama um vencedor, e os países que estão em cima do muro no momento provavelmente penderão de volta ao Ocidente.

Os principais países que se abstiveram na ONU –como a Índia, que quadruplicou suas importações de petróleo da Rússia a preço descontado em comparação com um ano atrás— ajustariam sua posição, que está provocando aflição em Washington. Mas a ambivalência do mundo deveria dar o que pensar a Biden e à Europa.

Um sinal de perigo é a tendência habitual do Ocidente de reivindicar liderança moral. Isso cria três problemas. Em primeiro lugar, é hipocrisia. A opinião pública americana prestou pouca atenção à carnificina repugnante na Síria, pela qual Assad é o principal culpado. A Alemanha recebeu 1 milhão de refugiados em 2015, mas a maior parte do restante do Ocidente não seguiu seu exemplo. Reino Unido e EUA juntos acolheram menos de 50 mil sírios.

O que a Rússia está fazendo à Ucrânia é uma barbárie. Mas barbárie é algo que não falta no mundo. Muitas pessoas no mundo muçulmano, em especial, acham que os EUA adotam dois pesos e duas medidas. Milhares de civis morreram no Iraque e no Afeganistão, abatidos por munições americanas, embora não tenham sido alvos intencionais (diferentemente do que está ocorrendo na Ucrânia).

Um segundo ponto a levar em conta é que o Ocidente é imprudente quando supõe que seus valores são universais. Nesta semana os EUA classificaram o que Mianmar fez com sua minoria rohingya de genocídio.

Apesar de Mianmar, diferentemente da Ucrânia, localizar-se na mesma região que a Índia, Narendra Modi, o nacionalista e hindu primeiro-ministro de Nova Déli, expressou protestos apenas da boca para fora. O fato de os rohingyas serem muçulmanos sem dúvida o influenciou. A Índia acolheu apenas uma parcela minúscula dos refugiados. Isso apesar de o país, diferentemente da China, ser uma democracia.

O terceiro ponto é que boa parte do mundo rejeita sanções ocidentais. Com a exceção das exportações de combustível para a Europa, o Ocidente em grande medida se divorciou da Rússia em um mês. A execução desse processo vem sendo espantosa. Mas também lembrou a outros países da capacidade que o Ocidente possui de punir aqueles de quem discorda.

É muito difícil argumentar que o Ocidente está errado nessa instância. Putin não apenas lançou uma ameaça mortal aos valores democráticos como está exaltando a lei da selva. Não surpreende que tantos países pequenos tenham condenado a Rússia na ONU.

A resposta do público ocidental à barbárie de Putin tem sido admirável. Mas, inevitavelmente, é seletiva. Quanto mais governos ocidentais compreenderem como grande parte do mundo os enxerga, mais capazes serão de praticar uma diplomacia eficaz.

Tradução de Clara Allain

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