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Tradução do 'Beowulf', que influenciou Tolkien, prefere história à poesia

Premiada versão de Elton Medeiros traz para o português um dos textos fundadores da língua inglesa

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Beowulf e Outros Poemas Anglo-Saxônicos (séculos 8º-10º)

  • Preço R$ 86 (368 págs.)
  • Autoria Anônimo
  • Editora Editora 34
  • Tradução Elton Medeiros

Reza a lenda que os alunos da Universidade de Oxford costumavam levar um susto na primeira aula do filólogo J.R.R. Tolkien. O professor entrava na sala berrando "Hwæt!" (pronuncia-se mais ou menos "Ruét!"), que eles interpretavam como "Quietos!". Na verdade, essa é a primeira palavra do épico medieval "Beowulf", com o significado de "Escutem!".

A história é um retrato em miniatura da imagem de "Beowulf" para muitos leitores modernos: ríspida, intimidadora e difícil de entender. Uma nova tradução brasileira do poema ajuda a desfazer boa parte dessa aura, embora não tente reproduzir em português a forma dos versos.

Réplica do elmo anglo-saxão de Sutton Hoo, enterrado em torno do ano 625
Réplica do elmo anglo-saxão de Sutton Hoo, enterrado em torno do ano 625 - Wikimedia Commons

A tradução em prosa, empreendida pelo historiador Elton Medeiros, é valiosa não apenas por trazer na íntegra o conteúdo dos mais de 3.000 versos do épico como também por incluir outros quatro poemas anglo-saxônicos, como "Widsith" e "Deor". O idioma em que foram escritos é o inglês antigo ou anglo-saxão, falado na Inglaterra mais ou menos até o fim do século 12.

Embora seja ancestral direto do inglês moderno, o anglo-saxão é bem mais próximo de outros idiomas germânicos, como o alemão e as línguas escandinavas, do que seu descendente. Em parte, isso se deve ao fato de que invasores normandos, do norte da atual França, conquistaram a Inglaterra a partir do ano de 1066 d.C.

A conquista levou a uma predominância cultural do idioma dos normandos —próximo do francês medieval—, a qual modificou profundamente o vocabulário e a estrutura da língua inglesa dali em diante.

Por isso, nenhum falante do inglês de hoje consegue ler o inglês antigo sem muitas horas de estudo prévio. E há ainda o fato de que a tradição poética da Inglaterra pré-1066 tem muito pouco a ver com o que veio depois, assemelhando-se bem mais à da Escandinávia medieval. É, de fato, um mundo estranho para quem só conhece Homero, Camões ou mesmo Shakespeare.

A tradução de Medeiros, bem como o alentado posfácio escrito por ele, enfrenta essas dificuldades com paciência e didatismo. Ele busca reproduzir de forma precisa, por exemplo, os "kennings", palavras compostas que funcionam como metáforas padronizadas de certos elementos muito comuns na narrativa.

Nos "kennings", o Sol, por exemplo, vira "woruldcandel", "vela do mundo"; "swanrad", "caminho do cisne", é o mar, e assim por diante —as metáforas são devidamente explicadas com notas de rodapé.

O texto traduzido também contorna a sintaxe frequentemente barroca dos versos para deixar mais clara a história do guerreiro Beowulf, um príncipe dos geatas —povo que talvez vivesse no sul da Suécia— que viaja para a Dinamarca a fim de enfrentar o ogro Grendel, que está matando os nobres que frequentam o palácio do rei Hrothgar.

Com força hercúlea e grande coragem, Beowulf cumpre essa missão e, mais tarde, torna-se rei, mas o despertar de um dragão na terra natal do herói o leva a enfrentar sua derradeira aventura.

Esse resumo de um parágrafo não faz jus nem de longe à complexidade do poema, que inclui uma grande gama de alusões a episódios lendários do passado germânico, que reaparecem em outros épicos, nas sagas escandinavas e em obras de cronistas medievais.

E a obra incorpora ainda uma fusão deliberada de elementos cristãos e pagãos —o monstro Grendel, por exemplo, lembra os gigantes enfrentados pelo deus nórdico Thor, mas é retratado como um descendente do assassino bíblico Caim.

Segundo uma das hipóteses sobre as origens do poema, analisada por Medeiros, isso pode indicar uma composição final da obra no século 10º, quando o reino cristão da Inglaterra havia incorporado descendentes de invasores escandinavos.

Graças à sua influência sobre a obra de Tolkien —passagens importantes de "O Hobbit" e "O Senhor dos Anéis" são basicamente recriações de trechos do poema—, "Beowulf" se tornou uma das principais inspirações da literatura de fantasia moderna.

O mais difícil, no entanto, é enfrentar a estrutura peculiar dos versos em inglês antigo, principalmente numa língua como o português.

Em vez de usar rimas, os versos anglo-saxões se baseiam na chamada aliteração, repetindo os mesmos sons de consoantes, ou então os de vogais, nas sílabas tônicas das palavras —muitas vezes, com duas aliterações na primeira metade do verso e uma no segundo.

Como se isso já não soasse complicado o suficiente, também existem padrões mais ou menos canônicos de distribuição de sílabas tônicas ao longo do verso.

Diante dessa complexidade, Medeiros adota uma postura bem mais próxima do historiador do que da do poeta. Segundo ele, traduções que tentaram reproduzir essas características formais sacrificaram "o sentido do universo do poema em favor do som de uma palavra, descaracterizando-o".

Pode-se discordar dessa posição, talvez radical demais diante da importância dos elementos formais para a grandeza de "Beowulf", mas o esforço para tornar o mundo do poema mais inteligível merece ser celebrado. O trabalho recebeu o prêmio de melhor tradução de 2022 da Associação Paulista de Críticos de Arte.

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