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'A História Natural da Destruição' subverte teses da Segunda Guerra

Filme de Sergei Loznitsa, em exibição no É Tudo Verdade, revisita imagens do conflito para discutir natureza humana

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Paulo Santos Lima

A História Natural da Destruição

  • Quando Dia 22/4, às 14h, na Cinemateca Brasileira, em São Paulo
  • Classificação Não informada
  • Produção Alemanha, Lituânia, 2022
  • Direção Sergei Loznitsa

"A História Natural da Destruição" é outro passo de Sergei Loznitsa em esmiuçar, via discurso essencialmente cinematográfico, a brutal história dos seres humanos no século 20 —sobretudo a história europeia, sua especialidade.

É também o segundo encontro desse cineasta belarrusso naturalizado ucraniano com o escritor alemão W.G. Sebald. Não entre os dois, inclusive porque o segundo morreu em 2001, mas entre duas formas de expressão, a do cinema e a da literatura, afinadas em possibilitar um resgate da história como experiência de memória, narrativa e autoconhecimento.

Cena do filme 'A História Natural da Destruição', de Sergei Loznitsa - Divulgação

O filme dialoga especificamente com o livro "Guerra Aérea e Literatura", lançado pela Companhia das Letras em 2011, em que Sebald reflete sobre a ausência, na população e na literatura pós-Segunda Guerra, de relatos sobre a destruição das cidades alemãs feita pelos bombardeios empreitados pela Inglaterra e pelos Estados Unidos. "Diante da catástrofe que então ocorria, os alemães se puseram num estado de muda fascinação", cita a fina escrita do autor.

Já no encontro anterior, em "Austerlitz", de 2006, Loznitsa extraía a essência do romance homônimo de Sebald, sobre o contato com as coisas do mundo gerar uma consciência de passado, uma historicidade.

No filme, o cineasta observa turistas que visitam campos de extermínio que se tornaram espaços de memória sobre o holocausto. Das selfies tiradas com sorrisos a um molejo nada denso das pessoas naqueles espaços, fica clara uma ausência de empatia e entendimento sobre aquele passado relativamente recente.

A análise que Loznitsa faz em "Austerlitz" permeia todo o seu cinema, inclusive as obras de ficção, como "Minha Felicidade", de 2010, que acompanha um caminhoneiro encontrando pessoas pela estrada, mostrando a corrupção endêmica e violências indescritíveis na Rússia atual e, de quebra, através de um carona idoso que passou pela Segunda Guerra Mundial, fazer um pareamento entre passado e presente.

Da ficção, emerge uma realidade —encenada, mas em imagens bem cruas. Dos documentários, é dos materiais de arquivo que ascende uma fabulação de ideias

Sebald critica, nas páginas do seu "Guerra Aérea e Literatura", o mutismo dos alemães naqueles anos, mas sem perder de vista o que pode iluminar no agora. Em "A História Natural da Destruição", Loznitsa subverte de base o tema original do livro, determinando que o horror dos milhões de mortes da Segunda Guerra Mundial não é obra específica da Alemanha nazista, mas da natureza humana.

Não chega a contrariar a essência do que Sebald escreveu, e a prova disso está em fazer de "A História Natural da Destruição" uma espécie de ilustração de "Guerra Aérea e Literatura", tal seria uma adaptação para o cinema de um livro ou quadrinho. Há, inclusive, uma consonância estilística afeita ao registro ficcional entre o texto do autor e as imagens do cineasta, ambos inclinados ao drama e à emoção.

Loznitsa dispõe de uma iconografia poderosa, começando pela natureza, a sociabilidade, a geometria burilada da arquitetura e das obras de arte, a cidade idealizada como espaço de convivência exemplar. Artefato anterior ao início da guerra, um dirigível entra no filme como um ator se fazendo de bombardeiro, revelando que o tempo do filme será mais panorâmico.

Há um possível sentido na questionável beleza que nos impacta das imagens de aviões, tomadas aéreas mostrando uma cintilante pastagem de fogo ocasionado pelas bombas incendiárias e nuvens ganhando uma aparência de carnaval na Marquês de Sapucaí.

Mais do que parear aviões do Eixo com os dos Aliados, assemelhar a destruição da alemã Hamburgo com Londres ou caças nazistas e bombardeiros da RAF britânica de igual para igual, o que de fato chama a juízo é um jogo imersivo idem ao do cinema-espetáculo.

Se os documentários da BBC sempre brilharam —e sofreram— pela austeridade, o filme de Loznitsa subverte ao naturalizar viadutos arruinados com crianças na rua mortas pelas bombas. Não importa se inglesas, ianques ou alemãs, mas sim uma violência inexorável e a natureza humana envolvida no ato.

Há ainda uma intenção à narrativa típica do cinema ficcional. O uso extremo da banda sonora, dando autenticidade ao enredo contado pela história, e o rico material de arquivo fará de "A História Natural da Destruição" uma espécie de sinfonia.

Isso a ponto de o diretor não se abster de, aos 66 minutos de duração, mostrar uma trêmula barra horizontal branca no centro da tela, o que lembra os filmes de vanguarda europeia dos anos 1920 de Hans Richter ou Marcel Duchamp.

O risco branco é a luz que passa pela fresta da porta do alçapão de bombas, que, aberta, revelará uma série destas seguindo ao alvo como dançarinas numa coreografia dos musicais da MGM. É uma dança da morte, e nada enganadora.

Sem freios e num desejo de urgência final, Sergei Loznitsa tem em seu cinema uma espécie de convite ao mergulho do espectador num mundo nunca visto, em sua absurda naturalidade com a violência, e sair dele atordoado e não sabendo ao certo qual é a ordem das coisas. Tudo isso num típico cinema catástrofe, com as destruições mais percebidas, mas sem a usual catarse do espetáculo.

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