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Como a 'quiet luxury' foi de 'Succession' à SPFW e se tornou a moda do momento

Seja na série da HBO ou na vida real, o 1% tem preferido o discreto ao chamativo para desfilar por um mundo em crise

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São Paulo

"Todo mundo está rindo discretamente", diz Tom. "Por quê?", pergunta Greg. "Porque ela trouxe aquela bolsa ridiculamente espaçosa", responde o primeiro apontando para a mulher que Greg levou como companhia ao evento. "O que tem ali dentro? Sapatos sem salto para andar de metrô?"

Essa cena da quarta temporada de "Succession", série recém-encerrada da HBO que satiriza os bilionários, a um só passo mostra a mesquinharia dos personagens e a escolha deles pelo vestuário discreto e elegante. Mas aqui no mundo real, a simplicidade do guarda-roupa da série talvez não seja exatamente acessível a 99% da população.

Modelo em desfile da Miu Miu na Semana de Moda de Paris, em março, apresentando um look para a temporada de outono e inverno - AFP

Segundo a Succession Fashion, página de Instagram que identifica as grifes e os valores das peças usadas pelos personagens, um macacão listrado da Ralph Lauren usado por Shiv, papel de Sarah Snook, por exemplo, custa aproximadamente R$ 9.500.

Kendall, vivido por Jeremy Strong, traja um blazer de cashmere da grife Tom Ford que vale algo em torno de R$ 23,4 mil, enquanto Tom, o executivo interpretado por Matthew Macfadyen, usa uma jaqueta da Herno estimada em R$ 7.000.

"Succession" não está sozinha nisso. O filme "Tár", com Cate Blanchett, mostra a atriz trajando looks que seguem a mesma linha. Ela veste peças de Egon Brandstetter, o badalado alfaiate alemão, e da The Row, marca das gêmeas Mary-Kate e Ashley Olsen.

A tendência de moda "quiet luxury", ou luxo silencioso, não está só na ficção. Na São Paulo Fashion Week deste ano, Igor Dadona e Marina Bitu são exemplos de etiquetas brasileiras que apresentaram peças que poderiam ser facilmente usadas em composições no estilo. A primeira mostrou peças sóbrias de alfaiataria, enquanto a segunda mostrou calças, camisas e macacões que poderiam ser usados por milionárias em um jantar.

Também na vida real, a atriz Gwyneth Paltrow tornou um julgamento no qual ela foi inocentada por um acidente de esqui num verdadeiro evento fashion. A vencedora do Oscar seguiu à risca os parâmetros da "quiet luxury", vestindo algumas das marcas que o têm protagonizado —uma bota da Celine de R$ 6.000, um casaco da The Row de R$ 7.500 e um colar de ouro da Foundrae, customizado para a atriz por R$ 126 mil, são alguns exemplos.

Estar diante de um juiz para provar a sua inocência, quem diria, pode ser um "fashion statement".

A "quiet luxury" foi adotada por influenciadoras digitais até mesmo no Coachella. O festival de música americano, que geralmente é uma passarela para looks extravagantes e lúdicos, também foi espaço para o discreto. As socialites Hailey Bieber e Kendall Jenner usaram, respectivamente, um cropped branco da Eterne e uma regata preta da St. Agni —os valores são de R$ 327 e R$ 239.

Também conhecida como "stealth wealth", ou riqueza discreta, a tendência afirma, a grosso modo, que chique mesmo não é sair por aí ostentando logomarcas. Afinal, se você é rico de verdade, para quê dizer isso insistentemente?

Nesse sentido, são preferíveis peças e cores atemporais e básicas para a composição de looks minimalistas. Mas os valores tendem a ser o oposto. É o novo desdobramento da "recession core", ou estética da recessão, que é decisiva para entender a moda deste ano.

Gwyneth Paltrow deixando o tribunal, em Park City, nos Estados Unidos, vestindo um casaco da marca The Row - Reuters

A célebre designer Phoebe Philo, quando assumiu a direção criativa da Celine há 15 anos, apostou no minimalismo quando o crash econômico aconteceu em 2008. O trabalho da britânica se tornou fundamental para a estética da década seguinte. Em setembro, ela inaugura a própria marca, voltando à ativa cinco anos após deixar a Celine.

Tanto a edição feminina quanto a masculina da Semana de Moda de Milão mostraram grifes da alta-costura, como Prada, Salvatore Ferragamo, Yves Saint Laurent, Miu Miu e Gucci, apostando suas fichas no mesmo jogador. No Brasil, se destacam as marcas Handred, Uma, Gloria Coelho, Osklen e Cris Barros, entre outras. Independente da moeda, falamos de marcas cujos preços têm no mínimo três ou quatro dígitos.

A "quiet luxury" responde a um contexto socioeconômico, diz Sofia Martellini, estrategista de moda da WGSN, empresa especializada em tendências de consumo. "Vivemos uma época de policrise —são muitas acontecendo ao mesmo tempo, como pandemia, guerra na Ucrânia e recessões. As classes mais altas são as menos afetadas nesses cenários", afirma. Para o consumidor de luxo, perdeu o sentido ostentar quando o básico falta a tantas pessoas.

A tendência reflete também uma preocupação ambiental. Com o planeta sobrecarregado de peças descartadas sob estímulo do fast fashion —e os brechós, não à toa, em expansão—, uma atenção especial tem sido dada à durabilidade e aos tecidos e cortes de qualidade.

Com o distanciamento social causado pela pandemia, o segmento da alfaiataria sofreu muito —afinal, estávamos em casa usando moletom. Conforme a quarentena foi se afrouxando, ela foi se popularizando. Ela é importante para a moda "quiet luxury". "Se bem-feita, pode gritar luxo", afirma a estrategista.

O alfaiate e designer Mateus Cardoso observa manifestações desse fenômeno em seu ateliê homônimo em São Paulo. "Em momentos de crise, recorremos ao clássico", diz. Segundo ele, a alfaiataria é um lugar seguro. "Cor, corte e detalhes podem até mudar, mas a essência continua a mesma. É um design que não vai embora."

Desfile de inverno de 2023 da grife Yves Saint Laurent - Divulgação

Ele diz acreditar que não se trata de algo passageiro, porque a discussão ambiental se impõe. "A alfaiataria pode não ser muito usada no Brasil por questões de clima e cultura, mas a ideia do consumo consciente não deveria sair de moda."

Carolina Casarin, historiadora da moda e autora do livro "O Guarda-Roupa Modernista", diz se tratar de algo cíclico esse olhar para o passado em momentos de incerteza —e que a economia anda lado a lado com a estética.

O contemporâneo traz ecos das guerras mundiais, em que a preferência por usabilidade e menos detalhamento nas roupas estavam em alta. Enquanto a Primeira Guerra Mundial acontecia, a Europa deixava de lado a opulência exibicionista da estética feminina em meio ao luto causado pelo conflito.

"Veio à tona a intersecção entre o luxo e a moral. As rendas e as plumas saem de cena", diz Casarin. "Mas no fim da Segunda Guerra, a indústria precisava propor uma estética mais exuberante para reaquecer a economia. A aparência feminina voltou a se pautar pela ideia de ostentação."

Fernando Hage, coordenador do curso de moda da Fundação Armando Álvares Penteado, a Faap, em São Paulo, lembra que, no início do século 20, a grife Chanel dizia fazer roupas simples para ricos.

"Tem uma visão estratégica do mercado que é a de popularizar esses produtos mais simples para obter uma margem de lucro muito maior [em relação aos outros] fazendo deles objetos de luxo", afirma. "Imagine quantas ele consegue produzir por dia em detrimento de uma camisa de seda que tem de ser costurada delicadamente."

O varejo já está absorvendo essas referências, apostando em roupas de cores neutras, terrosas e sem estampa, diz o professor.Por outro lado, brasileiros, culturalmente, gostam de usar tons mais vivos. Por aqui, então, a onda talvez deslanche com mais facilidade em grandes centros urbanos.

Michel Alcoforado, antropólogo do consumo e comportamento, diz que a tendência, a rigor não traz nada de novo. Trata-se de um movimento cíclico das elites econômicas —tão logo elas perceberem a popularização do estilo, voltarão a ostentar logos.

As elites se inventam por um processo decisivo que é se diferenciar de quem não é elite. Não à toa, os super-ricos tendem a ser vistos como lançadores de novos comportamentos. Estamos falando de marcas que existem há cem anos.

A modelo e influenciadora Kendall Jenner em desfile da Prada, na Semana de Moda de Milão - AFP

Outro ponto importante, ele defende, é a relação de repulsa e fascínio da sociedade brasileira pelos ricos. "Os brasileiros adoram imaginar que um rico não parece ser rico, mas eles obviamente estão ostentando", afirma.

Segundo o antropólogo, o "quiet luxury" é um marcador de distinção para um grupo pequeno —os próprios ricos. Usar uma blusinha de seda que não entrega logo de cara sua grife de origem e talvez nem tenha passado por uma vitrine de loja é uma habilidade sofisticada de praticar opressão de classe.

Segundo Alcoforado, no Brasil, novos ricos e ricos tradicionais não são diferentes no que se refere a repertório intelectual —ambos não o têm. Por isso, tanto faz a costura dessas roupas. O que vale mesmo é a distinção, e não o gosto. "O 'quiet luxury' é silencioso para quem não precisa saber, mas grita para quem precisa saber", diz.

Casarin e Hage, por sua vez, afirmam ser possível ver uma contradição em termos na "quiet luxury" —os produtos são simplificados, mas os preços, não. "A 'quiet luxury’ tem um lado bom, que é a premissa da qualidade dos materiais, mas quem garante que a marca de luxo não usa o mesmo que o das roupas do circuito fast fashion?", questiona Hage.

Falar que os ricos estão preocupados com o mundo é balela, segundo Casarin. "Se você estiver mesmo, então divida a sua fortuna com quem passa fome, pague melhor os seus funcionários, reduza o lucro da sua empresa." Esses, sim, são assuntos que deveriam ser trazidos à pauta, afirma.

Alcoforado, o antropólogo, diz que o mercado pode adorar novos termos, mas "no reino da Babilônia, tudo continua igual". Para ele, quem é rico não está nem aí. "O avestruz pode colocar a cabeça temporariamente dentro do buraco, mas continua a ser um avestruz."

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