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Cormac McCarthy dizia que seus olhos não liam livros ruins; veja raras entrevistas

Autor morto nesta terça-feira não falava com frequência com a imprensa e preferia proteger sua privacidade apesar da fama

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Elizabeth A. Harris
The New York Times

Cormac McCarthy não dá entrevistas.

O escritor, morto nesta terça-feira, aos 89 anos, deu pouquíssimas entrevistas em sua longa carreira. Nessas conversas —incluindo com o New York Times em 1992 e com Oprah Winfrey em 2007—, ele frequentemente respondia a perguntas contando histórias sobre outras pessoas. Estudiosos de seu trabalho dizem que McCarthy resiste a analisar seu processo de escrita publicamente.

O escritor americano Cormac McCarthy
O escritor americano Cormac McCarthy - Beowulf Sheehan/Divulgação

Mas, no início de sua carreira, antes do Prêmio Pulitzer e do National Book Award, antes de seus livros serem adaptados para o cinema e de seu nome se tornar conhecido até por quem nunca lera seus livros, McCarthy revelou alguma coisa sobre ele próprio e seu ofício.

Entre 1968 e 1980 ele deu pelo menos dez entrevistas a jornais locais pequenos de Lexington, no estado americano de Kentucky, e do leste do estado do Tennessee, região onde viveu e tinha amigos. Ele falou de suas influências literárias, sua abordagem à escrita, seus hábitos de leitura e até mesmo da casa que ele e sua então mulher reconstruíram com as próprias mãos, reformando um antigo estábulo de gado leiteiro.

Escrever, disse McCarthy, era uma compulsão, não um processo consciente. Quando pediram a ele um conselho prático para leitores principiantes, ele respondeu "leiam".

Soterradas em arquivos e praticamente esquecidas, as entrevistas foram reencontradas por dois acadêmicos, Dianne Luce e Zachary Turpin, e publicadas em setembro de 2021 em "The Cormac McCarthy Journal".

Parte do que diferencia essas entrevistas das poucas instâncias posteriores em que McCarthy falou publicamente, disseram os pesquisadores, foi que os jornalistas entrevistadores tinham amigos em comum com o escritor. Eles parecem ter deixado McCarthy mais à vontade que entrevistadores posteriores, disse Turpin.

"Ele pareceu mais descontraído, mais disposto a se abrir um pouco. É um achado raro para alguém como ele", disse o acadêmico.

As entrevistas desenham o retrato de um escritor jovem, "um autor de aparência juvenil", que encara seu trabalho com seriedade, mas não se enxerga como alguém especial. E elas refletem o modo de pensar da época —em um dos artigos, publicado no final dos anos 1960, a então mulher de McCarthy, Anne De Lisle, é descrita como "uma garota inglesa bonita".

"McCarthy é extremamente simpático, quase sedutor", escreveu Mary Buckner no The Lexington Herald-Leader em 1975. "Possui a habilidade de contar uma boa história com humor e nunca assume aquele status de ‘intocável’ que alguns escritores parecem ter. Na verdade, exatamente como muitos de nós, McCarthy diz que o que mais gosta de fazer é ficar na cama. ‘Há dias em que pego meus livros, minha máquina de escrever e passo o dia inteiro na cama –ou até dois dias.’"

Zachary Turpin, que é professor universitário e pesquisador de arquivos, pesquisou o nome incomum de McCarthy em alguns arquivos digitais (disse que Cormac era o nome de um antigo rei irlandês). Quando a pesquisa rendeu alguns resultados, ele contatou Dianne Luce, estudiosa de McCarthy. Luce tinha seu próprio pequeno estoque de artigos encontrados em várias visitas ao leste do Tennessee, onde vasculhou arquivos em microfilme e papel. Eles concluíram que, juntos, tinham material suficiente para publicar.

O achado saiu no momento em que McCarthy se preparava para publicar dois romances interligados, "O Passageiro" e "Stella Maris" –os primeiros desde 2006, quando ele lançou "A Estrada", que virou bestseller e valeu a ele o Prêmio Pulitzer.

McCarthy não deu entrevistas para acompanhar o lançamento dos dois livros. Em vez disso, vale lembrar uma fase de sua vida em que ele não se resguardava tanto.

Sobre a escrita

McCarthy descreve a escrita como "uma compulsão". Em 1973 ele disse a Martha Byrd, do The Kingsport Times-News, que não gostava de falar sobre suas ideias ou nem sequer as pôr no papel até ter certeza do que queria fazer com elas.

"Quando você põe uma coisa no papel, você mais ou menos a mata", ele disse. "Deixe a coisa solta, voando por aí, e você nunca sabe —pode se transformar em alguma coisa."

Uma vez que estava pronto para escrever, disse, as palavras fluíam. "Minhas mãos pensam por mim. Não é um processo consciente."

Quando ele se sentou para dar essas entrevistas, McCarthy já havia publicado romances que foram elogiados pela crítica, mas ainda não encontrara sucesso comercial. Mas, disse aos jornalistas, não era isso que buscava.

"Acho que eu poderia escrever algo assim (um romance comercial sensacionalista ou erótico) em uns 30 dias", ele disse ao The Maryville-Alcoa Times. "Em meus dez anos como escritor, teriam sido 120 livros, e com certeza um deles teria virado bestseller."

Mas, prosseguiu o artigo, ele não estava interessado em "‘livros de sexo’ ou em dinheiro" —o que queria era a felicidade.

"Sempre fiquei chocado com como as pessoas vivem a vida", ele disse. "Basicamente, sou muito egoísta e quero curtir a vida. Sempre me diverti."

Sobre a leitura

Ler é uma parte necessária de escrever, disse McCarthy.

Em 1969, quando pediram a ele conselhos para aspirantes a escritores, ele disse "acho que um conselho prático seria 'leia'". "Você precisa saber o que já foi feito. E precisa entender."

McCarthy disse que suas influências literárias incluíam "escritores de coragem", como Fiodor Dostoiévski, Liev Tólstoi, William Faulkner, James Joyce e Herman Melville. No artigo de 1971, intitulado "McCarthy é um dos autores jovens mais notáveis do país", McCarthy disse que tinha mais de 1.500 livros em sua coleção, que abrangia desde romances contemporâneos até as obras completas de dramaturgos gregos.

Ele não estava interessado em livros "ruins", comentou. "Não leio livros ruins", ele disse em 1975. "Não consigo fisicamente fazer meus olhos percorrerem a página."

Sobre privacidade

"Meu ideal", disse McCarthy ao The Maryville-Alcoa Times em 1971, "seria ser completamente independente". "Se eu pudesse, teria uma miniusina para gerar nossa própria eletricidade. Mas a gente tem que fazer concessões. Em um extremo há aquele emprego das 9h às 17h que você não gosta e uma vida totalmente artificial. No outro extremo está uma vida de ermitão. Mas eu não quero ficar isolado da sociedade e tenho que fazer algumas concessões."

Luce, a acadêmica que encontrou as entrevistas que McCarthy deu no Tennessee, disse que seu desejo de privacidade não se devia à timidez. A ex-mulher do escritor, De Lisle, contou a Luce que McCarthy fazia amigos com facilidade e, quando o casal viajava na Europa e no México, não hesitava em conversar e passar tempo com desconhecidos.

Os primeiros artigos o descreveram como cordial e charmoso. Mas, disse Luce, ele pediu a De Lisle para não compartilhar detalhes sobre a vida deles e instruiu seus amigos a não falar com ninguém sobre ele.

Em vez de um homem que quer viver na solidão, a imagem que emerge das entrevistas é de um autor que desejava proteger sua privacidade, ao mesmo tempo que sua reputação pública crescia.

"A casa dele foi no passado um celeiro de gado leiteiro de um andar, situado perto de uma estrada de cascalho meia milha depois de outros sinais de civilização, na Lakewood Addition, ao longo da Louisville Road", disse o artigo de 1971.

"Poucos moradores do condado de Blount sabem que há alguém vivendo no antigo celeiro. Ainda menos pessoas sabem que o dono do lugar redigiu cuidadosamente, quase palavra por palavra, dois dos romances mais notáveis a sair do sul dos Estados Unidos desde que William Faulkner estava em seu auge."

E era exatamente assim que McCarthy queria que fosse.

"Felizmente, ninguém sabe que estou aqui", ele disse. "Gosto do anonimato."

Tradução Clara Allain

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