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Gwendolyn Brooks cria mulheres negras que criam umas às outras

Vencedora do Pulitzer, americana se aproxima de Toni Morrison e Conceição Evaristo ao fazer sua escrevivência

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Maria Carolina Casati

Escritora e professora, é mestre em letras e doutoranda na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo

Maud Martha

  • Preço R$ 69,90 (168 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Gwendolyn Brooks
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Floresta

Nas primeiras 40 páginas de "Maud Martha", o romance de estreia de Gwendolyn Brooks publicado em 1953, o narrador —ou seria narradora?— apresenta um dos grandes desejos da protagonista.

"Maud Martha se guardaria para si mesma. Ela não queria a fama. Não queria ser uma "estrela". [...] O que ela queria era doar para o mundo uma boa Maud Martha. Essa era a oferta, aquele tanto de arte não poderia vir de mais ninguém. Ela iria lapidar e aperfeiçoar essa arte."

mulher negra usa máquina de escrever na biblioteca
A poeta americana Gwendolyn Brooks, em 1950, depois de ganhar o Pulitzer - Divulgação

Mas não é isso que ela faz. Ao longo de 34 pequenos capítulos, alguns muito semelhantes a poemas na forma e no lirismo —tipo de texto pelo qual a autora ficou conhecida e venceu o prêmio Pulitzer—, Brooks apresenta uma rica descrição do que é ser uma menina ou mulher negra no mundo e discute com inventividade questões como racismo, colorismo e amor negro.

Helen, a irmã "que tinha apenas dois anos a mais que ela e quase a mesma altura, peso e porte", era a desejada pelos rapazes; não obstante os longos cabelos de Maud. Ela era a irmã bonita, a irmã graciosa, "a irmã adorável". O que fazia com que Helen fosse tão atraente?

"Maud Martha não sabia o que era. Tentou encontrar algo que tinha que estar lá para ser imitado, algo que ela pudesse imitar. Mas não sabia o que era."

É interessante observar como o texto de Brooks, nessa e em outras passagens, se assemelha à narrativa de Toni Morrison em "O Olho Mais Azul". Quase é possível ver Maud e Pecola, protagonista da obra de Morrison, confabulando o que há de tão especial em Helen e Maureen Peal.

"Uma criança de sonho, mulata claríssima, de cabelo castanho comprido [...] Quando a chamavam, os professores sorriam, encorajando-a. Os meninos negros não lhe davam rasteiras nos corredores; os meninos brancos não jogavam pedras nela."

O capítulo mais longo do livro, "Os moradores das quitinetes", apresenta uma riquíssima descrição dos vizinhos de uma Maud já adulta, casada e mãe. Nele, o foco está em questões como saúde mental, solidão, etarismo, branquitude, entre outras.

Sobre o trabalho em uma "casa de família", por exemplo: "A sra. Teenie Thompson. Cinquenta e três; e cáustica sempre que falava das pessoas de North Shore para quem trabalhou como doméstica por dez anos. 'Ela me abraçava e me beijava... é claro, eu tinha que aceitar... eu tinha que trabalhar para eles. Mas acham que fizeram eu pensar que me amavam. Daí eu tinha que parar com aquela tolice de achar que me escravizava por eles. Para merecer o amor deles. Aqueles brancos.'"

A narrativa de Brooks se aproxima a muitas produzidas inclusive no Brasil, como os textos de Conceição Evaristo, Eliana Alves Cruz e Carolina Maria de Jesus. Mas como essas obras podem trazer temáticas e estilos tão parecidos se foram escritas com mais de 20 anos de diferença?

Ora, se Leda Maria Martins está certa, as pessoas descendentes de escravizados vivem sob a regência do tempo espiralar e não o cronológico, possibilitando que experimentem encontros e diálogos para além do presente, passado e futuro linear.

E se Evaristo está certa, há algo na escrita de mulheres negras —as filhas da diáspora africana—, a escrevivência, que faz com que honrem suas ancestrais silenciadas pela máscara da branquitude e contem suas experiências em seus termos e linguagens e, assim, construam os próprios mitos e lendas.

O que acontece em "Maud Martha", então, nada mais é do que mulheres negras se encontrando e se materializando pela escrita das muitas espirais temporais.

Ao se deparar com a narrativa dinâmica de Brooks, que acompanha Maud desde a infância até a idade adulta, algum leitor ou leitora desavisado poderia dizer que se trata apenas de um romance de formação. Mas o livro vai muito além disso.

A protagonista, ao entregar ao mundo quase como oferenda "uma boa Maud Martha", escreve a si e "escrevive" às outras tantas personagens do texto, dando forma, afetos, subjetividade e substância a todas elas. Martha existe porque se narra e é narrada por Gwendolyn Brooks, que a cria, fazendo com que as demais também existam nessa matrioska narrativa.

"Maud Martha" é uma obra que invoca a presença de outras mulheres negras para se significar. E é bom testemunhar esses nascimentos e renascimentos.

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