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Retrospectiva permite rever Geraldo Sarno, de 'Viramundo' a 'Sertânia'

Mostra no CCBB revela como o tempo transformou os filmes que veem São Paulo e Nordeste como faces da mesma moeda

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A relação do espectador com o filme muda com o tempo, certamente. Mas quem muda? Talvez o que mais mude seja o filme. Essa a impressão que me deixa, hoje, a revisão de alguns filmes antigos de Geraldo Sarno, morto no ano passado, que começam a ser mostrados numa ampla retrospectiva no CCBB.

A começar, claro, pelo mais célebre deles, "Viramundo", documentário sobre migrantes nordestinos que buscam em São Paulo uma nova chance de vida.

Cena do filme 'Viramundo', de Geraldo Sarno
Cena do filme 'Viramundo', de Geraldo Sarno - Divulgação

Foi um dos filmes inaugurais da importante produção documental de Thomas Farkas, que revirou o país, o Nordeste, sobretudo, em busca de imagens da vida, da fé, do trabalho e das vicissitudes do homem brasileiro.

Ali Sarno começava a praticar o que julgava essencial no documentário: surpreender a realidade, captá-la ao vivo.

Talvez não seja de todo errado dizer que o filme se dividia em duas partes: uma dominada pelas entrevistas dos retirantes (como eram então chamados os migrantes) e outra pela narração em "voz over".

O narrador expressa ali o saber, que de certa forma paira sobre o objeto do filme e o enquadra. Os personagens entrevistas de certa forma reforçam aquilo que o próprio autor do filme —"aquele que sabe"— enuncia.

Esse é um resumo meio vagabundo da visão clássica que se tem sobre os filmes de Sarno para a Caravana Farkas, em especial "Viramundo". Ela demonstra que, mais do que surpreender a realidade, o realizador a direcionava.

A questão hoje é: o que se abre ao olhar do espectador contemporâneo diante desses filmes? O que pode ainda nos surpreender? Em certa medida, o olhar do autor perde centralidade, deixa de ser tão importante: ele se situava num quadro específico, o de 1965, em que mostrar o homem brasileiro, em especial o nordestino, já era tomar uma posição política —de esquerda, claro— e preconizar a rebelião como maneira de dissolver nossas infindáveis contradições.

Geraldo Sarno, roteirista e diretor de cinema brasileiro - Folhapress

Quase 60 anos depois essas vozes silenciam, perdem relevo, em favor das imagens: o retirante dos anos 1960, seu falar peculiar, sua desesperança, mas também a estação ferroviária em que desembarca não parece um lugar de acolhimento, mas quase de isolamento. A São Paulo que encontra é outra, não a nossa.

A distância talvez nos permita observar melhor o homem que chegava, seus hábitos e crenças, do que em 1965, quando para o cineasta, mas também para o espectador, ele podia ser visto como objeto —como ressaltou Jean-Claude Bernardet.

O mais importante na retrospectiva de Geraldo Sarno é que esses filmes continuam, de algum modo, vivos e novos. Mostram outras coisas nas mesmas imagens. E o narrador, "aquele que sabe" transformou-se, ironicamente, no objeto do espectador que vê o filme.

A parte documental da obra de Sarno é mais extensa, mas talvez não mais importante do que aquilo que se pode rever em, por exemplo, em "O Picapau Amarelo", de 1974, produção de Thomas Farkas. Na época, a introdução de personagens não só mais modernos como estrangeiros no universo de Monteiro Lobato não chegou a deixar boa impressão.

Uma boa revisão, hoje, pode nos mostrar mais que apenas uma intromissão indevida na obra do escritor. Talvez hoje o sítio criado pelo autor paulista seja apenas uma relíquia nacional num mundo em que vários mundos e eras se entrelaçam. A observar.

Parecido foi o destino o de "Coronel Delmiro Gouveia", de 1979, visão de uma burguesia nacional progressista que não caiu muito bem no momento em que a esquerda intelectual não estava muito disposta a firmar pactos com um segmento que via como intimamente ligado a um regime militar que começava a entrar em agonia.

O fechamento dessa obra viria com "Sertânia", de 2018. Geraldo Sarno tinha então 81 anos. Não se julgava um veterano. Preferia se ver (e ser visto) como "jovem há muito tempo". A julgar por "Sertânia" uma reivindicação mais do que justa. Lançado no Festival de Tiradentes, em que o centro é o trabalho com novos cineastas, seu filme foi o que mais se destacou seja pela ousadia, seja pela beleza das imagens.

Ali ele descreve a trajetória do cangaceiro Gavião, que a horas tantas deixa o sertão e vem para São Paulo, à moda de "Viramundo", onde se torna policial. Tempos depois, no entanto, retornará ao Nordeste e ao cangaço.

É curiosa a coincidência com a trajetória de Sarno, nascido no interior da Bahia em 1938, que após estudar direito em Salvador viria para São Paulo para filmar, antes de retornar, enfim, ao Nordeste. No Gavião de "Sertânia", Sarno misturou fatos da vida de Gavião numa espécie de quebra-cabeça em que se misturam o fim do cangaço, o sertão, o delírio do cangaceiro, mas também em que se afirmam dois polos: São Paulo e o sertão.

Cena do filme 'Plantar nas Estrelas', de Geraldo Sarno
Cena do filme 'Plantar nas Estrelas', de Geraldo Sarno - Divulgação

Sarno, um homem desses dois mundos, recusava-se a vê-los como dois. Preferiu acreditar, sempre, que não existe oposição entre a riqueza paulista e a pobreza nordestina, e sim que essas são duas faces da mesma moeda. Seria possível pensar na riqueza que existe no atraso sertanejo tanto quanto na miséria do progresso paulista.

Se a origem de Geraldo Sarno encontra-se nos Centros Populares de Cultura do pós-guerra e na observação atenta de uma realidade que o documentário dos anos 1968 buscava revelar, sua aventura o levou à busca de um mundo de contradições e encantamentos, em que a ficção pode ir ao encontro de uma verdade até com mais força do que o documentário.

A retrospectiva do CCBB nos revela também esse autor de uma obra com muitos aspectos ainda por revelar ao espectador.

Retrospectiva Geraldo Sarno

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