Como fotos do dia a dia na periferia de Belo Horizonte desvelam história do Brasil

'Retratistas do Morro', no Sesc Pinheiros, usa retrato posado e imagens de festas para valorizar registros cotidianos negros

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São Paulo

Você poderia estar naquela imagem. Só que não. Na festa de Renatinha, uma mesa onde estão o bolo e uma bandeja de pastéis, uma Coca litro e um Guaraná idem. Podia ser seu aniversário. Mas aí você teria que ser aquela única criança branca da foto.

Guilherme Cunha, curador da exposição "Retratistas do Morro", em cartaz no Sesc Pinheiros, em São Paulo, lembra que Afonso Pimenta, um dos fotógrafos revelados na mostra junto com João Mendes, dizia que só queria colocar as pessoas com as melhores coisas que tinham em casa nos seus registros: "Nem que fosse uma garrafa de Guaraná".

'Aniversário de 6 anos da Renatinha', de 1988 - Afonso Pimenta/Divulgação

Esta é a primeira grande imagem que vemos na mostra, que já nos recebe com essa festa que provoca um estranho reconhecimento. Aquelas crianças batendo palmas, provavelmente cantando "Parabéns a você", em torno de um bolo mal conseguem esperar a música acabar para avançar nos quitutes.

Mas a familiaridade que nos conecta à imagem é estrangeira, se você, claro, não é do universo do morro que dá nome à coleção. Sim, se você é branco.

Tive contato com esse trabalho pela primeira vez em abril, dentro da coletiva "Negros na Piscina", que inaugurou, em parceria com o Fotofestival Solar, a Pinacoteca do Ceará. Misturadas ali entre trabalhos de Bispo do Rosário e do consagrado Marepe, as fotos dos mineiros Afonso e João provocaram de imediato uma estranha familiaridade.

Aquele cotidiano que expunham ali era próximo o suficiente para que eu me identificasse com ele, mas, claramente, era também distante da minha experiência infantil e adolescente. Mesmo com esse abismo, a vida que saltava das fotos era facilmente reconhecível. E era, sem dúvida alguma, brasileira.

Essa estranha familiaridade está ainda mais presente nessa mostra do Sesc Pinheiros, mais completa, com cerca de 300 fotos, selecionadas de um acervo de mais de 250 mil imagens. "O que vemos em todas elas", diz Cunha, "é uma transformação pela beleza".

Beleza essa que estava escondida. E cuja descoberta nos remete diretamente à revelação de outros hoje celebrados mestres da fotografia, como os fotógrafos africanos Seydou Keïta e Malick Sidibé. Seus registros do dia a dia do Mali e os retratos elaborados em estúdios quase amadores ganharam o mundo quase que por acaso e hoje fazem parte das coleções dos melhores museus.

O acaso também foi responsável por Cunha descobrir o trabalho de Afonso e João. Ele estava trabalhando num livro chamado "Memórias da Vila", sobre o bairro Santana do Cafezal, em Belo Horizonte, quando ao visitar uma de suas entrevistadas, dona Ana, ele lhe mostrou seus monóculos. "É como meus netos vão conhecer o avô deles", disse ela.

Poucos se lembram daqueles prismas de plástico que traziam as imagens para dentro do olho quando virados para a luz. Mas durante gerações, assim eram guardadas as memórias familiares. E, da coleção de dona Ana, Cunha chegou ao trabalho de Afonso e de João, hoje com 72 e 70 anos respectivamente.

Os dois entraram na fotografia por acaso e desenvolveram uma estética também por intuição, guiados talvez pelo instinto de simplesmente mostrar que aqueles rostos e corpos negros em situações não apenas formal, documental, mas num contexto em que eles possam "ter direito a trabalho e descanso", como descreve a apresentação de "Negros na Piscina".

"Uma paisagem em que lhes caiba e lhes pertença uma possível felicidade", segue o texto falando de "corpos pretos, indígenas, travestis, entre outros vários igualmente negros". Essa promessa se realiza de maneira ainda mais poderosa em "Retratistas do Morro".

Cunha define o trabalho de Afonso e João como uma "celebração da realidade". Quando ele foi procurar imagens para seu livro em arquivos públicos, encontrou apenas fotos de casas e eventualmente moradores posando formalmente na frente delas. "Não havia afeto na representação dessa população", diz ele.

As fotos desses retratistas contam uma outra história: de beijos, de mesas de sinuca, de festas de casamento, de pistas de dança, de crianças negras com diploma de formatura, de um aniversário feliz. "As pessoas estão lindas nesses registros", afirma Cunha, se referindo a uma exuberância que não se permitia sair daquele morro.

"O que você vê nas minhas fotos?", perguntou Afonso diante do entusiasmo de Cunha —que ficou sem resposta. "Era como se eu tivesse me deparado com um apartheid simbólico", afirma o curador.

Novos tempos, novos olhares. Assim como a "descoberta" de Sidibé e Keïta, estamos diante de uma epifania. O que nos emociona nesse acervo maravilhoso agora revelado é a beleza e a dignidade de rostos escondidos pela mídia das décadas passadas.

A começar pelos retratos clicados por João no estúdio do seu Foto Mendes, espontâneos estudos de uma estética alternativa do povo brasileiro. Talvez até mais autêntica do que a publicidade e a as revistas da época estampavam. A beleza de "Zé Repolho" (1970), por exemplo, é indescritível.

Afonso também, a certa altura de sua carreira, investiu nos retratos e a mostra no Sesc esconde uma pequena obra-prima nesse sentido: "Elana dos Santos" (1985), parte pré-rafaelita, parte Manet, parte a já citada tradição malinesa.

No entanto, para além dessas caras tão dignas e exuberantes, o que impressiona mais em "Retratistas do Morro" são as cenas em que podemos muitas vezes nos ver inseridos. A estupenda imagem de "Edinéia com Guitarra na Igreja" (1988); o bebê com cobertura de bolo nas bochechas em "Aniversário na Chácara" (1992); os DJs em "Nerimar e Misael no Som do Ponto" (1988) —todas assinadas por Afonso.

E há, sobretudo, o beijo estranhamente posado de "Arlene e Namorado" (1988), também de Afonso, na qual a artificialidade dos contornos do casal é praticamente irrelevante diante do abraço apaixonado dos dois, revelados numa intimidade que faria inveja a um imagem gerada por inteligência artificial misturando dois outros beijos mais famosos, um pintado por Gustav Klimt e o outro por René Magritte ("Os Amantes").

Mas é sobretudo na "Festa de Aniversário de Renatinha" (Afonso, 1987) que essa realidade velada se revela. E é ela que te recebe logo na entrada e te provoca, como uma esfinge, com uma questão: "Por que eu não estou nessa foto?". A resposta, quando você lembra que é branco, está nesta própria constatação.

Ou talvez você seja negro e vai caminhar por "Retratistas do Morro" feliz de ter chegado em casa. E perceber que essa é a história que realmente conta quem é o Brasil.

Retratistas do Morro: Afonso Pimenta e João Mendes

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