Como Samuel Fosso fez do autorretrato um espelho que desafia a identidade negra

Principal atração do festival Zum, artista camaronês expressa raiva e indignação em obras que aparentam alegria e leveza

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Estilo de vida década de 1970 (1975-78), de Samuel Fosso, publicada na ZUM #22 Cortesia de Jean-Marc Patras_Paris

Londres

Há um quê de liberdade e também de diversão nas primeiras imagens do fotógrafo Samuel Fosso, que chega ao Brasil neste sábado como principal atração do sétimo festival Zum. Seus autorretratos iniciados na década de 1970, quando ainda era um garoto e posava para a câmera com calças boca de sino e sapatos de plataforma, bagunçavam as noções de virilidade numa época na qual a vida social era restrita e expor o porte físico não estava entre as possibilidades.

Durante o governo ditatorial de Jean-Bédel Bokassa, na República Centro-Africana, onde vivia com o tio, o corpo era sagrado e jamais deveria ser exibido ou exaltado. Naquela época, com apenas 13 anos e à frente de seu próprio estúdio de fotografia —que reunia, ele lembra, alguns curiosos para ver o adolescente que se comportava como um adulto e tirava foto como poucos—, Fosso aproveitava o final do expediente para completar as poses de cada rolo de filme com autorretratos.

SF5738-SM5 001 Estilo de vida década de 1970 (1975-78), de Samuel Fosso, publicada na ZUM #22 - Cortesia de Jean-Marc Patras_Paris

A inspiração para cada pose vinha das revistas trazidas por voluntários do Corpo da Paz americano e o objetivo era enviar os retratos para a sua avó.

Nessas imagens —nas quais incorporava referências da época, como o figurino do músico Prince Nico Mbarga— estava impresso o contraste em relação à escassez da guerra civil nigeriana, que ele vivenciou antes de se mudar para a República Centro-Africana com o tio. Em meio à fome e à miséria, as roupas que vestia nesse período eram tomadas dos corpos de pessoas que haviam sido mortas na sua frente.

Filho de nigerianos, Fosso nasceu em Camarões parcialmente paralítico e retornou ao país dos pais após a impossibilidade de um tratamento na medicina tradicional.

Foi seu avô, curandeiro e chefe da aldeia, quem conseguiu reverter sua paralisia através de uma sequência de rituais. Por causa dela, no entanto, os registros de sua infância são inexistentes, já que sua família não quis contratar fotógrafos para retratar uma criança em suas condições.

Ao analisar sua biografia, muitos veem na escolha por autorretratos, e nas performances diante da câmera e na habilidade de reinventar a si mesmo, uma espécie de autocura, tese que o artista confirma.

"Eu vivi uma série de horrores e, se não pusesse para fora tudo o que queria, seria como um câncer. A fotografia foi uma libertação, algo que me salvou", afirma ele.

O conjunto de imagens que produziu sozinho, de 1975 a 1990, se valendo apenas da inventividade e do autodisparador da câmera, só veio a público em 1994, quando, por meio do contato com o fotógrafo francês Bernard Descamps, Fosso foi convidado para participar do primeiro festival Encontros de Bamako, no Mali.

Se, no princípio, o registro servia como uma maneira de transformar a si mesmo, a participação na mostra e o reconhecimento de seus pares trouxeram a Fosso a noção de que ele estava desenvolvendo um trabalho artístico.

É a partir dessa percepção que suas obras, desenvolvidas entre o documental e a performance, a história e a fabulação, passam a explorar principalmente o tema da libertação negra, o que Fosso enfatiza sem perder a leveza. Fotos aparentemente alegres, na sua opinião, não deixam necessariamente de expressar a raiva e a indignação.

Estilo de vida década de 1970 (1975-78), de Samuel Fosso, publicada na ZUM #22 - Cortesia de Jean-Marc Patras_Paris

Quando desenvolve a série "Tati", que leva o nome da loja de departamento parisiense que o convidou para realizar o projeto em 1997, ao lado dos fotógrafos africanos Seydou Keïta e Malick Sidibé, Fosso decide ir na contramão da proposta inicial.

A encomenda original previa só imagens em preto e branco, e Fosso pediu para realizar seu primeiro ensaio colorido.

Com o desejo de apresentar um registro diferente daquele normalmente associado à fotografia africana, ele cria algumas das imagens mais famosas da sua carreira ao encarnar arquétipos que vão do astro de rock ao empresário e à mulher burguesa.

"No meu processo criativo, quando aperto o botão da câmera, me transformo totalmente. Eu ligo meu corpo à figura, porque quero traduzir a sua história", diz.

O discurso de fundo, neste e em outros trabalhos, é a segregação. Algo que se torna mais explícito na série "African Spirits", de 2008, na qual Fosso se coloca na pele de figuras icônicas dos movimentos de independência africana e direitos civis americanos, como Nelson Mandela, Muhammad Ali, Angela Davis, Martin Luther King e Malcolm X.

'Le Chef', do artista Samuel Fosso, que passou por mostra na Oca em 2013 - Divulgação

Por ter encarnado tantos personagens, há quem diga que Fosso é um homem de mil faces, mas, por trás de todas as máscaras que assume, em cada uma de suas séries, o artista diz enxergar um único assunto —as disputas de poder.

"Estou particularmente interessado no papel que a escravidão desempenhou na história da África. Quero mostrar a relação do homem negro com o poder que o oprime", resume. "É algo muito consciente, sempre soube que era sobre isso que queria falar e é o que estou fazendo."

Dos primeiros autorretratos, em preto e branco, até suas obras mais recentes, o artista não recorre a clichês de representação e faz de sua fotografia um testemunho das inúmeras possibilidades da identidade negra.

E é nesse momento que sua prática se aproxima, de algum modo, do destino que havia sido traçado por sua família, para quem ele deveria seguir os passos de seu avô materno e se tornar um curandeiro.

"A diferença é que a minha cura se dá de uma forma mais espiritual", afirma o artista. "Por meio da fotografia, curo os que estão sofrendo por serem negros em um mundo de privilégios brancos."

Festival Zum

  • Quando Sáb. (3) e dom. (4), a partir das 10h
  • Onde IMS Paulista
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