Musa? Não, obrigada. Leonora Carrington, uma das últimas representantes do surrealismo, não escondia o dissabor ao ser vista apenas como fonte de inspiração para os homens do movimento. Acima de tudo: artista, definia-se a pintora e escritora nascida na Inglaterra.
Subversão é a palavra-chave da obra de Carrington. Suas telas são povoadas por figuras híbridas e criaturas místicas, com a mistura de planos como o humano e o animal —ou ainda o real e o imaginário. A mesma noção norteia "A Corneta", seu único romance, publicado em 1976.
A escolha da voz narrativa é capaz de selar o êxito ou o fracasso de uma obra literária. É ela quem dita o tom do romance e, no caso de "A Corneta", é um dos grandes acertos do livro. A história é contada por sua protagonista, a nonagenária Marian Leatherby. A ironia afiada permeia cada frase, ressaltando as nuances tragicômicas do romance.
Assim como Marian, Carrington deixou a Inglaterra rumo ao México, cenário do romance. Para a artista, essa travessia ocorreu de modo turbulento. Com a prisão do marido —o mestre surrealista Max Ernst, com quem se casou aos 20 anos— nas mãos do nazismo, ela sofre um colapso nervoso na Espanha. Lá, é internada em um hospital psiquiátrico.
Carrington consegue ajuda na embaixada mexicana de Lisboa e, na América do Sul, torna-se uma das principais vozes do movimento de libertação feminina, na década de 1970. Passa a maior parte da vida na Cidade do México, onde morreu aos 94 anos.
A experiência do enclausuramento é também vivida por Marian no romance. Um objeto altera a rotina da excêntrica nonagenária: ela ganha da melhor amiga uma corneta auditiva capaz de corrigir a sua surdez. Assim, descobre o plano da família para interná-la em um lar de idosos. A instituição é uma terra onírica em que Marian encontra uma espécie de seita liderada pelo casal Gambit, os donos do lugar.
O curioso título, "A Corneta", é um trunfo da tradução, mais fluido do que o original, "The Hearing Trumpet", e capaz de anunciar, de antemão, a estranheza do próprio romance. Em sua escrita, Carrington é uma típica surrealista, que oferece uma aura perpétua de sonho e pesadelo.
"A Corneta" é também um exemplo de literatura fantástica. Não sabemos se estamos diante do mundo como o conhecemos, distorcido pela visão de Marian, ou de um universo com leis próprias. O romance paira no limiar entre a lucidez e o delírio.
Logo no primeiro capítulo, Marian descreve a corneta auditiva: "o valor estético do objeto não era sua única qualidade". A afirmação é válida também para o romance. Além da experimentação narrativa, Carrington propõe uma meditação acerca do descarte dos idosos e uma subversão feminista, como afirma a escritora polonesa Olga Tokarczuk no posfácio do romance.
O posfácio é, aliás, outra escolha feliz da edição. A empatia de Marian pelas criaturas vivas traz ecos da também idosa Janina Dusheiko, protagonista de "Sobre os Ossos dos Mortos", de Tokarczuk.
Já as afinidades do livro com o surrealismo podem remeter, para os leitores brasileiros, à obra de um escritor nacional: Campos de Carvalho, que se aproxima do movimento artístico-literário em livros como "A Lua Vem da Ásia", de 1956, e "O Púcaro Búlgaro", de 1964.
Em sua narrativa, Carrington une o misticismo cristão às lendas celtas e criaturas mágicas. As idosas da instituição são engajadas em uma nova demanda do Santo Graal —a busca pela relíquia sagrada é tema dos romances de cavalaria do século 13. "A Corneta" é, desse modo, uma amálgama de referências, advindas de formas culturais de diferentes origens.
A subversão é marca da obra de Carrington. São aqueles que desafiam o status quo que nos levam a um novo ideal de futuro, alerta a autora. Resta torcer para que o livro encontre leitores dispostos a mergulhar em uma boa dose de delírio. O livro lembra que, por vezes, em boa literatura, é preciso distorcer as fronteiras do imaginário.
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