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Dirce Waltrick do Amarante

Como escolhas artísticas e comerciais guiam tradução de título de livros

Novo nome para clássico de Virginia Woolf no Brasil reacende debate sobre fatores que permeiam tarefa de traduzir

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[RESUMO] Parte central do trabalho de um tradutor de livros é a escolha do título das obras —decisão que pode ter diferentes motivações, de comerciais a editoriais e políticas. Ao lado de outras traduções, como "A Fazenda dos Animais", "A Cantora Careca" e "Ulysses", a nova edição em português de "To the Lighthouse", de Virginia Woolf é um exemplo recente do dissenso que permeia essas escolhas. As diferentes traduções do título trazem consigo variadas leituras, possivelmente essenciais na compreensão da obra literária.

Uma nova tradução de "To The Lighthouse", da escritora inglesa Virginia Woolf (1982-1941), assinada por Paulo Henriques Britto e publicada pela Penguin-Companhia das Letras (2023), ainda estava em pré-venda, mas já suscitava uma discussão a respeito do título escolhido para o romance em português, "Passeio ao Farol".

O livro, traduzido algumas vezes no Brasil, já havia sido publicado com títulos diversos, entre eles "O Farol", "Rumo ao Farol", e "Ao Farol". Esse último foi a opção de dois tradutores experientes, Denise Bottmann e Tomaz Tadeu da Silva, que já se debruçaram sobre outros textos da escritora.

A atriz Nicole Kidman no pale da escritora inglesa Virginia Woolf em "As Horas", filme de Stephen Daldry - Divulgação

Diante da escolha de Britto, outro grande tradutor, houve quem afirmasse que "Passeio ao Farol" seria sem dúvida a "melhor tradução", pois "Ao Farol" pareceria algo "muito vago".

Essa afirmação contundente foi contestada por Denise Bottmann em um texto esclarecedor, no qual ela afirma que "o ‘to’ em "To the Lighthouse" nada tem de vago: é denso e até pode ser ambíguo —é não só nem principalmente uma ida de bote (um 'passeio') até o farol físico, mas sobretudo uma dedicatória!".

Isso porque, prossegue a tradutora, "o farol não é só nem principalmente o farol da ilha que se enxerga da casa do casal Ramsay. É sobretudo a grande, centralíssima, ponderosíssima metáfora do papel da senhora Ramsay como o ‘farol’ da família, que ilumina, orienta e vitaliza as relações entre seus integrantes".

A crítica a essas opções de tradução tem sido, por vezes, ligeira e inconsequente. Parece que basta o gosto pessoal para avaliar, positiva ou negativamente, um trabalho inteiro de tradução. Já houve casos em que frases tiradas do contexto, que davam a falsa impressão de não terem sido traduzidas "apropriadamente" na língua de chegada, servissem para desqualificar toda a empreitada.

Em ensaio intitulado "Titre à preciser" ("Título a Determinar"), Jacques Derrida faz a seguinte ponderação: "Ao anunciar ‘título (a determinar)’ para esta conferência, faço uma promessa, mas qual?".

E prossegue afirmando que o título escolhido é como um cheque em branco, um lugar vazio para o verdadeiro título que surgirá. Esse título "verdadeiro", para funcionar a contento, deverá se conformar ao seu propósito ou, o que dá no mesmo, o propósito se conformar ao título. Portanto, os títulos seriam sempre fundamentais para compreender a abrangência da obra, em todos os seus níveis de sentido.

Quadrinho "Revolução dos Bichos", de Odyr (Companhia das Letras) - Divulgação

Um título de outro livro recém-publicado, "The Hearing Trumpet", romance da também inglesa Leonora Carrington, instiga essa discussão. Na recentíssima publicação pela Alfaguara, o livro de Carrington foi intitulado "A Corneta", mas "Hearing Trumpet" tem uma dupla conotação, pois se refere tanto a um aparelho que, no século 19, ajudava na audição e era chamado de trombeta ou corneta auditiva, quanto às trombetas do Apocalipse. Ao longo de todo o romance esse paralelo com o texto bíblico é destacado.

A tradução do livro de Carrington ficou a cargo de Fabiane Secches, mas, convém lembrar, nem sempre os tradutores têm total liberdade para escolher o título que constará na capa do volume.

Quando a tradução de Britto de "The Animal Farm", de George Orwell (mais um inglês), saiu em 2020 sob o título "A Fazenda dos Animais" (Companhia das Letras), e não o historicamente consagrado "A Revolução dos Bichos", ele afirmou que a mudança era fruto de uma escolha editorial, com a qual concordava por motivos literários e políticos.

Bottmann, que traduziu o livro e o publicou na mesma época de Britto, também optou por "A Fazenda dos Animais" (L&PM).

O fato é que, às vezes, na escolha de títulos de livros prevalece o apelo comercial, em detrimento da conexão com a obra, como aconselhava Derrida.

Quando o título da tradução aparentemente não interfere no contexto da obra, o apelo comercial ou publicitário não é tão problemático. Que diferença faz traduzir "Ulysses", de James Joyce, por "Ulisses" ou "Ulysses" (forma arcaica em português)?

Esse nome próprio que intitula o livro não aparece no enredo do romance, mas não é ocioso ou inócuo: Joyce quis fazer menção ao herói da "Odisseia", de Homero, para destacar a ressonância mítica da sua obra, a partir do título.

"Ulysses", da Companhia da Letras, na tradução de Caetano Galindo, é o único, das três traduções para o português, que manteve o "Y" do original e aludiu, assim, à antiga ortografia portuguesa. Segundo declaração do tradutor, foi uma escolha editorial, talvez para diferenciar o livros das versões anteriores.

"La Cantatrice Chauve", do romeno naturalizado francês Eugène Ionesco, que conhecemos como "A Cantora Careca", poderia ser traduzida por "A Soprano Careca", como a peça é conhecida em inglês ( "The Bald Soprano".

Soprano ou cantora, na história de Ionesco só há uma breve menção a essa personagem, e totalmente fora de contexto. Portanto, o tipo de cantora que ela é não significa nada para a peça, ou melhor, apenas destaca a arbitrariedade do título, ressaltando ainda mais o seu caráter absurdo.

Há ainda os títulos que não costumam ser traduzidos, como, por exemplo, "Popol Vuh". De acordo com Gordon Brotherston, que traduziu a cosmogonia maia-quiché para o português com Sérgio Medeiros, publicada pela Iluminuras, "‘pop’ significa esteira trançada, assento da autoridade e conselho, mas é também o nome de uma festa anual [...]. ‘Vuh’ significa simplesmente livro". Uma tradução possível seria "Livro do Conselho", mas os estudiosos têm preferido manter o título no original, como fez também Josely Vianna Baptista, em edição da Ubu.

O mesmo acontece com "Ayvu Rapyta", que relata, como diz a estudiosa e tradutora Joana Vangelista Mongelo, "o início do mundo guarani e o fundamento da palavra". O título poderia ser traduzido, explica Mongelo, por "o fundamento da palavra, o início da língua, a criação da língua ou o início da língua guarani (Ayvu: fala, Nhepurū: o início)".

Há ainda aqueles títulos que são traduzidos, mas vêm acompanhados do título original, como é o caso, por exemplo, de "Finnegans Wake", também do irlandês James Joyce. Donaldo Schüler, que traduziu o romance na íntegra, acolheu a proposta de Haroldo e Augusto de Campos e intitulou a sua versão, que saiu pela Ateliê, de "Finnicius Revém", porém antecedido pelo nome original na capa do livro.

Na tradução do Coletivo Finnegans, do qual faço parte, optou-se, com o aval do editor Samuel León, da Iluminuras, por um título híbrido: "Finnegans Rivolta", o qual, porém, não passou incólume e recebeu críticas de leitores que gostariam de ver o nome em inglês precedendo essa tradução, sob a alegação de que ficaria mais claro de que obra se tratava.

Há ainda aqueles títulos que, modificados no original e na tradução para se encaixarem no "politicamente correto", revelam o que deveria ter sido guardado em sigilo até as últimas páginas do livro, como sucede com o agora intitulado "E Não Sobrou Nenhum", de Agatha Christie, originalmente "Ten Little Niggers", conhecido aqui como "O Caso dos Dez Negrinhos".

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