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'A Marcação', de Frida Ísberg, é uma distopia de quem tem a vida feita

Livro é teste de empatia aos brasileiros, convencendo que os dramas da Islândia são fundamentais para nosso futuro

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André Araujo

Jornalista, professor e pesquisador

A Marcação

  • Preço R$ 74,90 (280 págs.); R$ 52,90 (ebook)
  • Autoria Frida Ísberg
  • Editora Fósforo
  • Tradução Luciano Dutra

O romance "A Marcação", da autora islandesa Frida Ísberg, tem, à primeira vista, todos os elementos que caracterizam as distopias contemporâneas. O livro se passa em um futuro próximo, muito reconhecível ao presente, onde uma inovação tecnológica faz emergir disputas políticas e filosóficas sobre os rumos de uma determinada sociedade —o que para alguns é um avanço social, para outros é um verdadeiro suplício.

mulher loira de casaco azul, camisa branca e cinturão sobre jeans, contra fundo cinza
A escritora islandesa Frida Isberg, autora de 'A Marcação' - Gassi/Divulgação

Na trama, acompanhamos um elenco de personagens que estão envolvidos, direta ou indiretamente, em um plebiscito que irá determinar o uso compulsório de um teste extremo de personalidade.

O teste, de acordo com seus defensores, é capaz de analisar de forma objetiva a capacidade de empatia de alguém. Aqueles que alcançam um padrão mínimo são "marcados", tendo acesso a determinadas áreas da cidade e uma facilidade maior para conseguir vagas em empresas, financiar apartamentos ou se candidatar a um cargo público.

Já aqueles que falham, os pouco empáticos, acabam sendo marginalizados como potenciais criminosos ou cidadãos de menor valor para a sociedade islandesa. É claro que a proposta não deixa isso evidente, afirmando que não passa de uma questão reversível, tratável com acompanhamento psicológico.

O romance de Ísberg realiza uma curiosa inversão da figura da "marca" como distinção social. Ao contrário do que acontece historicamente, quando são aqueles que carregam uma determinada marca os excluídos, nessa suposta distopia há uma corrida para o registro. Parece que estamos diante de uma sociedade que, já plenamente estável do ponto de vista econômico e social, precisa criar um dispositivo de distinção a mais.

Os marcadores de gênero, classe e etnia, verdadeiros responsáveis por dispositivos de alienação, perseguição e marginalização, estão ausentes do romance. Testemunhamos uma sociedade de iguais, que não satisfeita com sua igualdade, precisa marcar aqueles que são mais iguais que outros.

Não por acaso, não aparece no romance qualquer tipo de personagem que desvie da norma padrão europeia. Mesmo o personagem mais marginalizado, o jovem trambiqueiro Tristan, é capaz de fazer uma proposta para um apartamento próprio economizando três meses de salário.

Ou melhor, esses personagens aparecem como imagens nos testes de empatia: imigrantes, refugiados, empobrecidos são objetificados como forma de testar a reação dos islandeses diante da dor dos outros.

Ísberg é engenhosa em revestir sob uma roupagem distópica uma importante investigação sobre a valorização exacerbada que a empatia tem no discurso contemporâneo.

Por um lado, questionamos se a empatia como régua moral e social é capaz de substituir noções um pouco fora de moda como a solidariedade ou a compaixão. Por outro, não deixa de ficar um gosto amargo na boca ao pensar que tipo de sociedade chegou a tal ponto que, ao analisar a si própria, elenca como a raiz de seus problemas uma questão psicológica. Não a miséria econômica, não a perseguição política, não o encarceramento em massa de certas populações. É a falta de empatia.

Por isso o livro de Ísberg também propõe uma espécie de teste de empatia ao leitor, especialmente ao brasileiro.

Na mesma toada em que seus personagens se tornam progressivamente mais odiosos, forçando o leitor a manter algum tipo de relação positiva com eles, a distopia também se descortina como uma imaginação especulativa de quem tem a vida feita. Por baixo do verniz crítico, há a base sólida de uma verdadeira utopia liberal, capaz até de nos convencer que estamos perante um problema que nos concerne.

Com um certo distanciamento, é difícil se identificar com o tom apocalíptico dado ao tema, por mais que durante a leitura sejamos plenamente convencidos que os dramas da Islândia são fundamentais para o nosso futuro, mérito da escrita da autora.

Ao lembrar os personagens e dilemas que costuram o romance, não há como esquecer a canção de Caetano Veloso: "Como são lindos, como são lindos os burgueses (...) mas tudo é muito mais".

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