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Como o livro 'Brazil Builds' levou prédios de Niemeyer e Lúcio Costa ao mundo

Obra resgata pilares da arquitetura modernista e propõe debates como identidade nacional e representatividade

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Edifício Caixa d'água, em Olinda, em Pernambuco, retratado no livro 'Brazil Builds' Carlos Mesquita/Divulgação

Francesco Perrotta-Bosch

Autor de 'Lina: Uma Biografia' e doutorando da FAU-USP e da Universidade IUAV de Veneza

Rio de Janeiro

Nos pormenores residem a virtude e a relevância da reedição do célebre livro "Brazil Builds" oitenta anos após seu primeiro lançamento.

Tais pormenores nem sempre são óbvios ou explícitos, mas estimulam correspondências entre passado e atualidade. Caso prestemos atenção às fotos no livro de 1943 da então futura sede do Ministério da Educação e Saúde Pública, percebemos que não estava concluída a obra do edifício que a própria publicação aponta como "o mais belo prédio governamental do Ocidente", uma vez que as imagens revelam escoras de madeira no térreo da construção.

Edifício Caixa d'água, em Olinda, em Pernambuco, retratado no livro 'Brazil Builds'
Edifício Caixa d'água, em Olinda, em Pernambuco, retratado no livro 'Brazil Builds' - Kidder Smith/Divulgação

Estamos em 2023 e há muito a capital federal foi retirada das margens da baía de Guanabara, porém o mesmo icônico edifício, agora conhecido como Palácio Gustavo Capanema, segue com seus pilotis interditados por trás dos tapumes e andaimes de seu excessivamente demorado restauro.

"Brazil Builds: Architecture New and Old 1652-1942" foi publicado originalmente como catálogo de uma exposição no Museu de Arte Moderna (MoMA), de Nova York. O livro foi escrito pelo arquiteto e curador Philip L. Goodwin (1885-1958) com fotografias de G. E. Kidder Smith (1913-1997). Aliás, este arquiteto-fotógrafo converteu sua aventura pela arquitetura brasileira em um receituário editorial, que derivou numa espécie de coleção composta por "Switzerland Builds" (1950), "Italy Builds" (1955), "Sweden Builds" (1958), entre outros títulos dedicados a catalogar edificações excepcionais dentro de determinadas fronteiras nacionais.

Mesmo tendo sido originalmente publicado nos Estados Unidos, a edição original de "Brazil Builds" já vinha com os textos em inglês e português. Ser uma publicação bilíngue é indicativo do empenho diplomático dos norte-americanos em ampliar as alianças em meio à Segunda Guerra Mundial.

Ao fim da nova edição brasileira, lê-se um artigo breve e bem fundamentado da professora Mônica Junqueira, em que se aponta a mediação feita pelo embaixador Carlos Martins e pelo ministro Gustavo Capanema para que Goodwin e Kidder Smith fossem orientados diretamente por Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Marcelo Roberto, Attilio Corrêa Lima e Candido Portinari. Tê-los como supervisores do roteiro de viagem pelo Brasil transparece tanto na escolha de projetos catalogados no "Brazil Builds" quanto na sub-representação de alguns arquitetos: salta aos olhos o tímido espaço concedido a Gregori Warchavchik —especialmente nas ausências das pioneiras casas modernistas da rua Santa Cruz, de 1927, e da rua Itápolis, de 1929— e a Affonso Eduardo Reidy.

Não é um fac-símile o que a casa editorial Ikrek proporciona, mas uma edição com revisões sutis e efetivas —os pormenores. Isto se percebe logo na substituição do título em língua portuguesa. Embora desconheço estudioso que faça referência ao livro unicamente como "Construção Brasileira", esta foi a tradução do nome impressa na folha de rosto do original. Por sua vez, a nova edição apresenta a designação "Brasil Constrói".

Em um texto franco e detalhista incorporado ao fim da recente impressão, o editor Pedro Vieira justifica a mudança do título em português pelas "numerosas exposições que tiveram origem naquela do MoMA, ao traduzirem o título, optaram pela construção sujeito-verbo." O tempo verbal de "Brasil Constrói" é o presente do indicativo, o que demonstra um esforço de reavivar a publicação para a atualidade, apresentando-a como parte de um processo de construção de uma identidade nacional que segue em andamento.

Não deixa de ser significativo que o curador de arquitetura e design do MoMA, Martino Stierli, autor do outro texto adicionado à edição brasileira de "Brazil Builds", faça referência logo no primeiro parágrafo à destruição dos palácios de Brasília projetados por Niemeyer em 8 de janeiro de 2023. Ao assistir pela televisão a infame insurreição bolsonarista, segundo Stierli, "o público internacional foi mais uma vez lembrado da associação ímpar, no imaginário popular, entre a linguagem da arquitetura moderna e a nacionalidade brasileira."

Com discrição, a editora Ikrek fez um trabalho oposto aos golpistas: revisitar "Brazil Builds" é como juntar os cacos para nos recordar de um âmbito específico —a arquitetura moderna— em que este país foi verdadeiramente incrível. Após passarmos por anos de destruição cultural e vivermos uma época na qual atos de contestação fazem uma estranha "joint-venture" com a busca despudorada por audiência, esta edição Brasil Constrói é um sopro de sensatez.

Isto não quer dizer que "Brazil Builds" foi uma publicação perfeita e que devamos cultuá-la acriticamente. As necessárias correções foram feitas em singelas ações editoriais —repito, nos pormenores. Nas páginas do livro, o texto em português foi deslocado para as colunas à esquerda, adquirindo protagonismo na leitura. A redação de Goodwin foi retraduzida para a língua portuguesa, o que é um grande alívio visto que a precária tradução original não fazia jus à relevância do livro.

Como esta é uma publicação de arquitetura, as imagens contêm informações essenciais. As fotografias de Kidder Smith passaram por novo tratamento. A produção gráfica é primorosa. E merece destaque a iniciativa de redesenhar as plantas e os cortes, conduzida pelo arquiteto Guilherme Pianca, em que se buscou maior rigor na padronização e na legibilidade das representações arquitetônicas, bastante inconstantes na versão do MoMA.

Aos desatentos, podem parecer detalhes menores, mas são pormenores significativos que, em conjunto, fazem da edição brasileira de 2023 um trabalho sério de crítica editorial da visão norte-americana a respeito da arquitetura brasileira no começo da década de 1940. Aliás, quem quiser ter acesso ao catálogo original, o site do MoMA disponibiliza a digitalização completa gratuitamente.

Alguma contextualização é pertinente para reforçar a natureza precursora de "Brazil Builds" quando lançado em 1943. Lina Bo Bardi ainda não havia imigrado para o hemisfério sul e teve contato com a publicação quando morava numa Milão sob as bombas da Segunda Guerra Mundial. João Vilanova Artigas, o mentor da Escola Paulista de arquitetura que evitava a palavra "detalhe" em prol do termo "pormenor", era recém-formado e dono de uma pequena construtora que fazia casas com formas distantes das apregoadas pelas vanguardas arquitetônicas. Paulo Mendes da Rocha não tinha nem ingressado na universidade.

As fundações ou as autonomias das faculdades de arquitetura da UFRJ, Mackenzie e USP só viriam a ocorrer na segunda metade da década de 1940. Os projetos de prédios modernos icônicos como o MAM-Rio, Masp e o conjunto do Ibirapuera são posteriores à exposição nova-iorquina. Nem aterro existia para se implantar o Parque do Flamengo. E, sobretudo, Brasília ainda não existia.

"Brazil Builds" é anterior a tudo isso. Sua imediata e ampla aceitação é comprovada pelas reimpressões de 1944 e 46, cujos exemplares rapidamente se esgotaram, o que lhe conferiu o estatuto de livro raro, quase mítico. A publicação funcionou tanto para difundir aquela jovem arquitetura para o exterior, quanto para consolidar ao público interno o modernismo como novo cânone.

Em alguma medida, o livro é corresponsável por abrir caminho para Lina, Artigas, Mendes da Rocha e diversos outros arquitetos brasileiros. Por isso, "Brazil Builds" tem um caráter de certidão de nascimento da arquitetura moderna no país.

Contudo, não é um documento restrito aos modernistas. Era um esforço incompleto, porém inédito, de catalogação da arquitetura brasileira, dedicando metade de seu miolo a edificações dos períodos colonial e imperial. Havia uma predisposição em apresentar uma correspondência entre o barroco colonial e um singular moderno brasileiro —reproduzindo um argumento por décadas desenvolvido por Lúcio Costa.

Tal iniciativa torna-se ainda mais convincente na nova edição do livro com o maior detalhamento conferido à planta da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em Ouro Preto, composta pela interseção de duas ovais: seu desenho parece tanto um aprimoramento do templo também ovalar de Sant’Andrea al Quirinale, de Gian Lorenzo Bernini, em Roma, quanto o precedente para o salão de dança do Cassino de Belo Horizonte, atual Museu de Arte da Pampulha, projetado por Oscar Niemeyer, ali sendo alçado ao papel de principal arquiteto brasileiro.

As tantas curvas e elipses barrocas da ornamentação interna do opulento Convento de São Francisco de Assis, em Salvador, e na fachada e nas torres da igreja dedicada ao mesmo santo em Ouro Preto permitem uma analogia com o santuário de abóbodas parabólicas concebido por Niemeyer para as margens da lagoa da Pampulha (um projeto ausente no livro) e a graciosa Casa de Baile (presente na publicação) do mesmo conjunto arquitetônico.

A casa grande da Fazenda Samambaia, em Petrópolis, foi selecionada para mostrar o paisagismo de Roberto Burle Marx, qualificado em "Brazil Builds" como "um homem de vários talentos artísticos". As ruínas da Igreja de São Miguel das Missões (ca.1760), no Rio Grande do Sul, são apresentadas em par com seu museu projetado por Lúcio Costa, em 1937, acerca do qual Goodwin reflete ser "estimulante encontrar uma sociedade desse tipo, que percebe que só um desenho honestamente contemporâneo serve para um museu como este." Em sua seleção de arquiteturas antigas, os autores estadunidenses ignoraram completamente edificações de culturas indígenas.

Goodwin e Kidder Smith reproduziam a cruzada dos pioneiros modernos brasileiros contra o estilo eclético dos acadêmicos ligados a Belas Artes: a respeito dos prédios da Biblioteca Nacional e do Theatro Municipal no Rio de Janeiro, o norte-americano pontificou "quanto menos se fale sobre eles, talvez seja melhor."

Analisando seus textos, o interesse de Goodwin claramente reside nas avaliações de técnicas construtivas, materiais e elementos arquitetônicos: ele destacou o predomínio do concreto armado, nutriu sentimentos conflitantes a respeito da tradição dos azulejos; e estranhou o pouco uso da madeira, que constatou ser matéria-prima aqui abundante.

Seu grande encantamento foi com o "brise-soleil" (ou quebra-sol), tratado no livro como a grande invenção: em várias páginas, o autor repetiu suas virtudes para controle do calor e da luz em fachadas de vidro.

Na sequência, elencou diferentes brises: os horizontais da Estação de Barcas do Rio, projetada por Attilio Corrêa Lima; o vertical esguio e regulável de Niemeyer para a Obra do Berço, no Rio, e no Iate Clube de Belo Horizonte; o vertical fixo de placa de concreto do edifício da ABI, no Rio, concebido pelos Irmãos Roberto; e o apogeu do "brise-soleil" eram as tríades metálicas horizontais azuis preenchendo o grid da fachada noroeste do Palácio Capanema, o edifício que "solapou a rotina antiquada do pensamento governamental" e, segundo Goodwin, contrapunha-se corajosamente com o classicismo anacrônico dos palácios de Washington, Londres e da Alemanha Nazista.

Para reforçar que a nova edição de "Brazil Builds" não é um ato de reiteração de um tomo intocável, a Ikrek fez uma tiragem especial de mil exemplares numerados do livro com intervenções artísticas.

A instigante inserção da obra "Boate Pedrita", de Rafael RG, nas guardas do impresso, nos induz a atentar como a cultura popular e arquitetura vernacular foram negligenciadas na seleção original do MoMA. O artista insinua como "Brazil Builds" é o livro de dois especialistas estrangeiros buscando encontrar a suprema excelência em um lugar insuspeito para eles, isto é, o Brasil.

Aliás, Goodwin é explícito no seu exclusivismo quando caracteriza a elite brasileira como intelectualizada e humanista em contraponto à maioria da população na frase: "A classe alta lê muito, mas a classe baixa, mais numerosa, quase não lê."

O fotógrafo Mauro Restiffe inseriu imagens de sua expedição no sertão do Piauí de 2015 em meio a espaços em branco das páginas de "Brazil Builds". É uma operação de calculadas fricções e acordos estéticos e temáticos, o que, por vezes, beira o exercício da composição. Especialmente belo é quando Restiffe incorpora figuras humanas, quase ausentes nas fotos de Kidder Smith, o que confere um estatuto escultórico a pessoas comuns.

Fernanda Fragateiro fez o trabalho visualmente mais contundente ao sobrepor os nomes de mulheres sobre o índice do livro organizado de acordo com os arquitetos —e eram todos homens em "Brazil Builds". Particularmente importante é a única mulher ali com nome e sobrenome: Elizabeth Mock foi colaboradora na publicação de 1943 e seu nome não aparece na ficha técnica do livro. Isto reitera como, ao longo da história, as mulheres são colocadas em posições de subordinação e obliteração, o que faz com que toda iniciativa de reparação seja pertinente.

Todavia, há uma segunda virtude inesperada. Em letra bold, Fragateiro lista os primeiros nomes de Zaha (que deduzimos seja a Hadid), Lina (Bo Bardi), Lilly (Reich), Carmen (Portinho), Charlotte (Perriand), Kazuyo (Sejima), estas seis grandes arquitetas, designers e engenheiras que poderiam ter mais estudos a respeito, mas estão longe de serem anônimas. Por trás desses nomes femininos estão os celebrados Niemeyer e Burle Marx, mas também pessoas muito negligenciadas pela historiografia arquitetônica como Luiz Nunes, Carlos Frederico Ferreira, Carlos Henrique de Oliveira Porto, Firmino Fernandes Saldanha, alguns deles nem mesmo têm um reles artigo no Wikipedia.

São ilustres desconhecidos que fizeram parte do famosíssimo "Brazil Builds", caíram no ostracismo e submergem sob a intervenção artística de Fragateiro. Eis um belo incentivo a jovens pesquisadores de universidades brasileiras a caçarem documentos a respeito desses arquitetos do "Brazil Builds" sobre os quais sabemos muito pouco.

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