'Mão Afro-Brasileira', que marcou o circuito artístico, ganha nova edição no MAM

Exposição reúne artistas negros como a exibição original de 1988, pensada por Emanoel Araújo e vanguardista no Brasil

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São Paulo

Sobre o fundo totalmente negro de duas telas, o autorretrato em tons de cinza do artista Sidney Amaral se destaca. Numa das telas, sua figura veste luvas e mira um vestido de noiva pendurado como um saco de pancadas. Na outra, há dois dele na tela, um agredindo o outro com um tripé.

Pintura de João Timótho da Costa na exposição 'Mãos: 35 Anos da Mão Afro-Brasileira', no Museu de Arte Moderna de São Paulo - Vincent Bosson/Fotoarena/Folhapress

A sensação que as pinturas transmitem é de impotência diante de algum sofrimento, quase como se o artista, morto em 2017, estivesse tentando lutar contra um mal que ele próprio não consegue decifrar completamente.

As duas obras, "Bem me Quer, Mal me Quer" e "Embate - Eu e o Outro" estão na mostra "Mãos: 35 anos da Mão Afro-Brasileira", no Museu de Arte Moderna de São Paulo, uma pequena reedição da grande exposição pensada por Emanoel Araújo em 1988 para mapear a extensa produção de artistas negros na arte, desde o barroco até o contemporâneo. O Museu Afro Brasil exibe uma parte da seleção, junto com cartazes de divulgação da mostra original de 1988.

Sidney Amaral também está na Bienal de São Paulo deste ano com a obra "O Estrangeiro", em que um homem negro pequeno observa ao longe a imensa estrutura arquitetônica projetada por Oscar Niemeyer para o mais importante evento de arte contemporânea.

Suas obras remetem à análise escrita por Emanoel Araújo no texto que abriu a "Mão Afro-Brasileira" original, há 35 anos, que reverberam até hoje quase como uma profecia. "Celebrar o artista negro e os seus feitos, desde os tempos terríveis da escravidão até os dias não menos severos de hoje, será sempre um ato de frustração."

Não por acaso, há poucos metros de Amaral estão retratos a óleo de pessoas negras pintados há um século, que também compunham a mostra de 1988. São pinceladas de João Timótheo da Costa e de seu irmão, Arthur Timótheo da Costa, que representaram rostos e paisagens cariocas de 1890 a 1930 e exerceram o importante —e raro, no circuito artístico da época— papel de eternizar pessoas negras por mãos negras.

"Em 1888, acabou a escravidão no Brasil. Agora sabemos que as pessoas negras foram protagonistas nesse processo. Elas foram a ponta de lança de uma luta que talvez tenha sido a mais importante acontecida no Brasil", diz Claudinei Roberto da Silva, que organiza a exposição.

Silva assumiu a organização de "Mãos: 35 anos da Mão Afro-Brasileira" depois da morte de Emanoel Araújo, que esteve presente nas primeiras tratativas para a reedição da mostra inaugurada no mesmo ano da Constituição brasileira.

"O Emanuel tinha convicção de que a exposição de 1988, 'Mão Afro-Brasileira', ofereceu parâmetros para o desenvolvimento de um pensamento, historiográfico até, sobre arte afro-brasileira, que até então era inédito", diz Silva.

"Aquela exposição foi uma espécie de catalisador. Em 1968 foi proclamado o AI-5, depois, negros e negras se organizaram paulatinamente até que, em 1978, foi criado o Movimento Negro Unificado em São Paulo. Eu penso no trabalho do Emanoel Araújo, naquele momento, como o de alguém que consegue fazer um buquê de revoltas latentes."

Cauê Alves, diretor artístico do MAM, foi quem iniciou as tratativas com Emanoel Araújo. Num primeiro momento, a ideia era reeditar o catálogo original, algo que o artista considerou complexo demais, devido a questões legais envolvendo as obras da mostra original.

Mas a ideia de usar parte do acervo do Museu Afro Brasil, que em parte vem da mostra de 1988, se manteve. "O MAM tem feito algumas exposições que revisitam a sua história. Essa exposição de 1988 é emblemática dentro da história."

Segundo Claudinei Roberto da Silva, o curador, a exibição foi impactada pela morte inesperada de Emanoel Araújo, em setembro do ano passado. "A diferença é que antes [em 1988] a exposição ocupava todo o museu, e hoje ela ocupa a menor sala", diz.

Se as paredes são ocupadas, na maior parte, por obras figurativas, trabalhos com tendência abstrata ganharam destaque no miolo do salão expositivo. Lá estão duas esculturas da jovem artista Rebeca Carapiá, que também integra a mostra "Direito à Forma", no Instituto Inhotim, em Minas Gerais, dedicada a artistas negros que evitam o figurativismo em suas obras.

"Palavras de Ferro e Ar" fazem parte de uma série de esculturas de metal, em que um fio de dois metros de altura se molda em curvas no ar. Na mesma seção estão as serigrafias em branco e preto de Almandrade, de 70 anos atrás. A série de quadros, batizada "Poema Visual", transmite sua mensagem mais com desenhos concretos do que com as poucas palavras que exibem.

No centro da mostra também estão duas composições geométricas do próprio Emanoel Araújo, ao lado de relevos de madeira de Rubem Valentim —nas quais os símbolos do candomblé, transformados em geometrismo, parecem conversar com a série "Lâminas", de Taygoara Schiavinoto, mas também com as telas coloridas do jovem André Ricardo.

"O acesso de negros e negras ao ensino superior, nos 12 anos de governo do PT, foram muito importantes para a sedimentação dessa cena. André Ricardo é um exemplo disso", diz Silva. Segundo o curador, o contínuo desenvolvimento de uma linguagem concreta a partir dos símbolos de matrizes culturais africanas é um dos pontos altos das novas gerações.

Se em 1988 a mostra pensada por Emanoel Araújo era um lobo solitário no circuito das artes, agora "Mãos: 35 anos da Mão Afro-Brasileira" inaugura junto de outras exibições que se concentram na produção de artistas negros.

Alguns exemplos em cartaz são "Dos Brasis", no Sesc Belenzinho, que reúne 240 artistas de diferentes períodos, "Fazer o Moderno, Construir o Contemporâneo: Rubem Valentim", no Inhotim, e a própria Bienal de São Paulo, que nesta edição tem o predomínio de artistas não brancos.

Na visão de Silva, a pluralidade de mostras reforça a reflexão sobre a utilidade do museu enquanto projeção do poder de um grupo. "Essas exposições sinalizam a vontade de aprofundar o que chamamos de democracia. Ou o museu amplia o diálogo com outros setores da sociedade, ou ele flerta com a obsolescência."

Mãos: 35 Anos da Mão Afro-brasileira

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