Em seus primeiros livros, "A Gorda" e "Caderno de Memórias Coloniais", Isabela Figueiredo demonstrou fascínio por narradoras confessionais e ambivalentes, numa dicção frenética que constrói personagens desamparadas e marcadas pelo trauma.
Já em "Um Cão no Meio do Caminho", uma obra intocada pela autoficção, a relação entre as vozes narrativas e a memória social e familiar investe no mesmo inventário de sentimentos, mas sem produzir o impacto que fez dos livros anteriores um sucesso de crítica e público.
Ainda vemos neste novo romance o confronto constante com o passado, que dessa vez se descalibra num projeto estético interessado no resgate do lírico e da esperança nas vidas dos protagonistas José Viriato e Beatriz.
Vizinhos num bairro periférico, eles têm suas histórias entrecruzadas com o violento legado da ditadura e do colonialismo, orbitando pelas páginas do livro entre o vazio existencial e o desejo por outra realidade.
Os dois recusam a vida social num idealismo da solidão, na tentativa de pacificar seus tumultos internos, mas a curiosidade de um sobre o outro estabelece uma conexão de amizade, com a partilha de histórias pessoais ambientadas dos anos 1970 à contemporaneidade, em Lisboa, Mafra e Luanda.
Imerso no fluxo urbano como catador de lixo e bugigangas para venda na feira da Ladra, José Viriato surge como um andarilho com residência fixa, guiando uma trama regida pela pulsão da escuta, do apego e respeito aos animais, dando aos seus cães nomes como Cristo, Nossa Senhora, Revoltado e Redentor.
O encontro com sua vizinha discreta e acumuladora, apelidada no bairro de Matadora por sua semelhança com uma personagem de filme policial, desemboca numa comunhão delicada e paulatina de vulnerabilidades e empatia.
No contraste entre o catador de ética antiespecista e a antiga balconista que se enclausura depois da morte da mãe —e morre de medo de cachorro—, o leitor se decepciona com encontros mal aproveitados, em que as trocas quase sempre se dão por monólogos que parecem isolados um do outro.
Nesse painel de fraturas expostas a conta-gotas, de passados que seguem assombrando por relembranças, a amizade dos dois vizinhos comove mesmo com o parco resultado, mas frustra pela sombra da expectativa de desenvolvimentos maiores.
A narrativa começa com um relato de perseguição e morte feito pela vizinha ao amor de juventude que a passou a ignorar, mas mesmo essa dramaticidade ressoa fracamente pelo livro, tanto no momento em que é narrada quanto nos outros traumas que ela resolve compartilhar.
O apelo à amizade fraqueja com a pouca expressividade diante dos dilemas do livro, como a mãe de José Viriato definhando após o divórcio pedido pelo marido, sem reverberações de gestos ou palavras da interlocutora no transcorrer da longa digressão.
Até mesmo a reaproximação de José e sua avó, incentivada por Beatriz, e a chegada do cachorro Redentor como avatar de um novo tempo de bonanças, são todas construídas num aspecto de monólogo, criando uma camada isolante para uma cartografia sentimental que, a todo momento, parece querer comover e instigar mais do que consegue.
Por todo esse percurso, a prosa do romance se desenrola numa ânsia incessante de palmilhar passo a passo cada ação com o raciocínio avizinhado mais imediato e provável, não deixando espaço para o leitor perceber por si só se o que acabou de acontecer é lamentável, surpreendente, comovente.
Não há lacunas interpretativas no texto, que são todas preenchidas com os raciocínios comuns da narração, não permitindo que o leitor se insira na produção de sentido do texto, tornando a leitura rápida, mas sem grandes atrativos.
É um romance opaco, que lemos como um manual de montagem de alguma miniatura, passo a passo descrito, com resultado previsto, interditadas as variações de leitor a leitor.
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