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Matthew Perry deu vida ao mais humano dos 'Friends' e desfez tabus

Ator que morreu aos 54 nos legou a ironia de Chandler Bing e sobriedade ao falar da dependência química que o consumiu

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O ator Matthew Perry. Reprodução

São Paulo

Há dois papéis definidores de Matthew Perry, o ator americano-canadense cuja morte, aos 54 anos, neste sábado, afogado na própria banheira pegou fãs, jornalistas e colegas de surpresa. Um é o de Chandler Bing, o personagem sarcástico de profissão indefinível que compunha o sexteto da série "Friends". Outro é o do comediante e escritor afiado que se tratava a olhos vistos de grave dependência química.

É bobagem discernir qual dos dois teve mais relevância na cultura pop. Chandler catapultou Matthew ao sucesso e ao escrutínio intenso que ele traz, um dos estopins citados pelo ator para seu consumo de substâncias variadas, aos 24 anos; Matthew, em provação perpétua, emprestou a Chandler a melancolia e a ironia que fizeram do personagem o mais humano de uma série que de realista tinha pouco.

"Friends" foi um fenômeno cultural de seu tempo, a virada da década de 1990 para os anos 2000, apesar de seus muitos defeitos aos olhos da plateia mais sensível de hoje (a falta de representatividade é o mais óbvio deles), e compartilha com "Seinfeld", outra série memorável que funciona quase como seu retrato em negativo, a grande sacada de trocar as relações familiares que até então davam o tom das sitcoms pelos laços de amizade entre jovens adultos.

Isso ressoou com especial impacto nos Estados Unidos, onde o mais natural antes da crise econômica da virada dos anos 2010 era que os filhos logo deixassem a casa dos pais e se mudassem de cidade em busca de formação profissional e amadurecimento. Era essa fase da vida que "Friends" retratava, com seus tropeços, seus desgostos profissionais e suas memórias envergonhadas.

Que a ninguém ali faltasse dinheiro, que não houvesse personagens relevantes de origem étnica distinta, que orientação sexual e sobrepeso servissem de motivo para piadas eram questões que apartavam parte significativa dos espectadores, mas não falavam tão alto quanto sua vitrine aspiracional para toda uma geração que acabara de virar adulta ou estava prestes a chegar lá.

Chandler, com sua franqueza cortante, sua ironia irrefreável e sua vida profissional e amorosa ainda mais desastrada que as dos demais era um elemento que desequilibrava a trupe mais certinha, quase um grilo falante a lembrar que a vida é mais difícil do que o que mostra a TV.

Os anos passaram, parte dos fãs virou detratora da série, e continua a ser reconfortante a lembrança que ela traz de uma época com menos crises, antes de o 11 de Setembro e o terrorismo internacional tomarem os noticiários, antes de crises globais produzirem repercussões sísmicas, antes da pandemia, quando a Aids já não mais assustava, a Nova York que emoldurava a história estava em seu auge, e o mundo vivia uma rara bonança que no Brasil coincidiu com o fim da inflação, a estabilidade e a abertura econômica.

Matthew Perry aparecia mais gordo ou mais magro conforme a temporada, às vezes com o rosto cansado ou inchado, e suas internações se tornavam recorrentes. As minúcias por trás de cenas gravadas às custas de esforços da produção para deixar o ator em condições de atuar viriam à tona mais tarde, e se tornariam o estofo de uma biografia transparente lançada há um ano. Sua condição, contudo, nunca foi ocultada.

Ele estrelou filmes e outras séries, com moderado ou quase nenhum sucesso, e sua presença no noticiário passou a ser mais frequente pelos problemas de saúde, dos quais fez questão de tratar abertamente e, em que pese a ironia aqui, com sobriedade.

Sua doença não foi um drama esmagador nem um detalhe a ser maquiado, ela esteve ali o tempo todo em sua exata medida, sem sensacionalismo nem condescendência. Para uma geração que se tornou adulta a seu lado, e que viu brotar e crescer a epidemia de dependência de opioides, não se trata de feito menor. Sua contribuição, entre recaídas e uma disposição cativante de relatar o problema, ajudou e continua a ajudar a desmantelar preconceitos.

Não está claro o quanto essa condição contribuiu para sua morte prematura. O modo com que ele a tratou, decerto, é um legado persistente.

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