Primeira advogada do Brasil enfrenta vilões como o Coringa em HQ lúdica

Esperança Garcia, escravizada no interior do Piauí, estrela livro distribuído em escolas públicas e quilombos do estado

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Esperança Garcia, machucada, discute com Antônio Vieira do Couto

Esperança Garcia, machucada, discute com Antônio Vieira do Couto Bernardo Aurélio/Divulgação

São Paulo

O universo dos quadrinhos na cultura pop constrói heróis e vilões. Ele nos ajuda a pensar sobre o que é extraordinário no ser humano. A primeira advogada do Brasil propôs a modernização das leis do Estado antes mesmo da criação do STF (Supremo Tribunal Federal). Era Esperança Garcia.

Ela morou no interior do Piauí no século 18, teve pelo menos um casal de filhos, ia à missa aos domingos, quando podia, enquanto seus direitos eram cerceados pela escravidão.

Agora é possível testemunhar a história da jurista nas páginas pretas e brancas de "A Voz de Esperança Garcia", HQ recém-lançada.

Página 118 A Voz de Esperança Garcia
Esperança Garcia escreve a petição para pedir melhores condições para ela, para seu filho e outras mulheres negras da senzala - Bernardo Aurélio/Divulgação

Hoje considerada heroína, Garcia endereçou uma carta à coroa portuguesa para reivindicar melhores condições de vida e escapar do capitão Antônio Vieira do Couto, branco famoso por torturar negros escravizados, inclusive o próprio filho de Esperança.

O manuscrito foi feito em 6 de setembro de 1770. Ou seja, seis anos antes da Independência dos Estados Unidos (1776). A Revolução Francesa só foi ocorrer 19 anos depois (1789). A tão aguardada declaração dos direitos humanos se tornaria pública apenas em 1948. A carta tem outro marco histórico, a data de sua elaboração virou Dia da Consciência Negra no Piauí.

O enredo do gibi é ambientado a 280 km da capital Teresina, onde hoje fica a cidade de Nazaré do Piauí, com 6.665 habitantes. É ali que a protagonista ri, chora, ora, sente saudades e busca formas de aproveitar esses sentimentos em sua defesa.

Do outro lado, capitão Antônio, o antagonista, não partilha das mesmas habilidades da advogada. Sua personalidade remete a integrantes da galeria de vilões da cultura pop dos últimos 80 anos. Como o Coringa, arquirrival do Batman, e Darth Vader, que apesar de ter surgido nos cinemas com "Star Wars, Uma Nova Esperança", em 1977, também aterroriza mocinhos nos gibis do presente.

As referências ao Coringa ficam explícitas na metade da aventura. Nesse ponto da saga, Antônio Couto levara Esperança para outra fazenda, em Isaías Coelho, a cerca 206 km da terra natal da advogada. Lá, ela foi mantida longe de amigos e de seu marido, Ignácio Angola.

Comovidos pela situação, aliados de Garcia orquestram a fuga da moça na ausência do patrão, ao conduzirem-na, durante à noite, em meio ao mato até os quilombos de seu grupo. Há relatos de que ela teria transitado entre as cidades de Nazaré do Piauí e Isaías Coelho, passando pelas comunidades quilombolas de Riacho Fundo, Queimada Grande e Algodões.

Enfurecido com a rebelião, Antônio decide punir todas as pessoas negras da sua fazenda. Ele imobiliza cada um deles e golpeia seus corpos, como bem pode ser observada no gibi.

As duas cenas lado a lado. À esquerda o gibi brasileiro "A Voz da Esperança Garcia", à direita o gibi estadunidense "Batman #427 - Morte em Família - Bernado Aurélio/HQ Dragon/Divulgação

Os enquadramentos das pancadas acontecem em quatro cenas. Na primeira, o homem branco segura um bastão com a mão direita acima da cabeça, ele desfere a chibatada que só é concluída na segunda imagem. Como quem não está satisfeito com o resultado, o torturador ergue novamente o porrete na terceira ilustração. Dessa vez, com as duas mãos.

O quarto quadrinho exibe a trajetória do bastão descendo até encontrar sua vítima. O movimento traça um chifre na testa de Antônio, que está às gargalhadas. A combinação dos elementos visuais confere ao capitão uma silhueta diabólica. Uma releitura de outro momento icônico dos quadrinhos: a surra do Coringa em Robin, o ajudante do Homem-Morcego, que, de tanto apanhar, entrou em coma, como bem narra a revista popular, "Batman - Morte em Família".

Roteirista de "A Voz de Esperança Garcia", João Luiz diz que existe uma série de similaridades na história com Coringa, Vader e obras de arte como a sua HQ. "Fizemos de propósito", conta. "As intertextualidades podem ser compreendidas ou captadas por diferentes públicos."

Parceria da livraria Quinta Capa Quadrinhos com o projeto Rumos, do Itaú Cultural, "A Voz de Esperança Garcia" ganhou 2.000 impressões. Parte está disponível para a venda no site da livraria. A outra foi doada para escolas públicas, bibliotecas, e quilombos dos estados de Piauí e Maranhão. Também é possível baixar a edição de forma gratuita (em avozdeesperancagarcia.quintacapa.com.br).

Vale registrar que Luiz e o ilustrador Bernardo Aurélio fazem referências a estupros contra escravizados, cometidos pelos personagens brancos, sem jamais exibir tais cenas.

Se por um lado ocultam episódios de crimes sexuais, por outro, escancaram os linchamentos. A escolha por essa abordagem tem ao menos duas interpretações. A primeira é para combater a noção de que existiu uma forma leve de escravismo.

Especialista em direitos humanos, amiga de infância do roteirista e do ilustrador, a advogada Malú Pôrto diz que "antigamente ensinavam a gente na escola que a escravidão no Piauí foi branda."

Página 15 do quadrinho A Voz de Esperança Garcia
O cotidiano de Esperança é valorizado no gibi; segundo João P. Luiz são as pessoas ''comuns" que mudam o mundo - Divulgação

Quando adolescentes, Malú, João e Bernardo montavam associações de fãs de quadrinhos e quadrinistas em Teresina. Uma de suas responsabilidades era correr atrás de patrocínio para o grupo. "Foi aí que tomei gosto para lidar com burocracia", brinca a jurista. "E fui fazer direito na Universidade Federal do Piauí."

Mais tarde, Pôrto participou da elaboração do Dossiê Esperança Garcia, processo que elevou a carta da ex-escravizada à petição, em 2022. Sensibilizada com os registros da personagem, a advogada incentivou os colegas a fazerem o gibi.

A segunda interpretação sobre as cenas violentas registradas na HQ é uma maneira de enfraquecer o "mito da democracia racial", vertente que nega a existência do racismo e defende que pessoas de todas as cores têm as mesmas oportunidades no país.

"Seria um erro apagar a violência de histórias como a de Esperança Garcia", diz Fernanda Thomaz, chefe da coordenação-geral de Memória e Verdade sobre a Escravidão e o Tráfico Transatlântico, ligada ao Ministério dos Direitos Humanos.

Sem o conhecimento das torturas, as pessoas passam a acreditar que os conflitos étnicos-raciais não existem ou não ameaçam a integridade física dos brasileiros, segue a historiadora. "É quando deixam de elaborar políticas públicas de reparação histórica", explica. "A ditadura militar, por exemplo, reforçou e se beneficiou dessa ignorância."

Para Monalisa Carmo, pesquisadora em educação na Unicamp, "é muito bom ter acesso a narrativas que vêm de outras regiões do Brasil", o que diversifica as possibilidades de existência e produção de conhecimento. A HQ de Garcia é recomendada para crianças a partir dos dez anos.

Em meio aos debates sobre a importância de uma ministra negra no STF, a história em quadrinhos levanta, na opinião da pesquisadora, uma discussão importante: "quem são as Esperanças Garcias de hoje?" Ela mesma tem um palpite. "Diria que são as mulheres negras que reivindicam e constroem espaços de luta por elas mesmas, por suas famílias e por uma coletividade."

O projeto Quilombos do Brasil é uma parceria com a Fundação Ford

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